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É POSSÍVEL UTILIZAR A ARBITRAGEM PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS?

Ana Beatriz C. Drummond[1]


Historicamente, o instituto da arbitragem foi desenvolvido visando à resolução de conflitos privados. Há registros de que seu início tenha se dado em 3.000 a.C., no entanto, em Roma foi sendo largamente utilizada antes da institucionalização da justiça nas mãos do Estado. Em seguida, no território que conhecemos hoje como Inglaterra, foi se expandido em forma de negociação mercantil paralela à estatal. Destaca-se, ainda, a Era Feudal, época em que os diferentes reinos precisavam resolver suas dificuldades e, pela inexistência de lei comum aplicável, bem como pela inexistência de Tribunal constituído superior à divisão feudal, a arbitragem foi sendo aprimorada.


Já no mundo contemporâneo, o aumento da utilização do procedimento arbitral se deu a partir da globalização e da aproximação dos diversos Estados através de mecanismos empresariais. Assim, como forma de facilitar e permitir que os atores optem por seu uso e moldem-no da forma que desejarem, a arbitragem vem se tornando o mecanismo mais escolhido para resolução de disputas, sobretudo as internacionais.


O exposto acima, a princípio, nada tem a ver com a resolução de conflitos gerada pela violação dos direitos humanos. Esta é tratada do ponto de vista estatal, considerando os atores envolvidos e, muitas das vezes, mobilizando sistemas internacionais como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e até mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU).


No entanto, o instituto da arbitragem e os direitos humanos acabam por se complementar. De modo prático, como se sabe, grandes empresas têm atuação em países subdesenvolvidos, os quais apresentam um sistema de justiça nem sempre tão confiável, muito marcado pela corrupção dos atores estatais e pela morosidade. Em paralelo, temos o exponencial crescimento das medidas de ESG (Environmental, social and corporate governance), as quais valorizam, dentre outros fatores, a proteção dos empregados e da população afetada pela atuação da empresa atuando, consequentemente, em prol da proteção dos direitos humanos.


Dessa forma, para driblar as dificuldades locais impostas, em cenários de potencial violação, as empresas passaram a buscar soluções alternativas e mais adequadas. A priori e como escolha mais imediata, algumas empresas passaram a adotar a mediação, levando mediadores capacitados até o local, a fim de solucionar as questões impostas junto à população.


Para além do esforço em conseguir medidas reparadoras confiáveis, o problema da efetividade também é latente. Assim como o Brasil, grande parte dos países tem uma enorme dificuldade com o tempo de resolução das demandas, em vista da grande quantidade de causas levadas à apreciação das Cortes estatais. No mais, como citado, os modos tradicionais de reparação dos direitos têm regras específicas que não abarcam todos os cenários de violação.


Em vista disso, a professora da Universidade de Vienna, Ursula Kriebaum, junto com estudiosos da Hague Academy of International Law, decidiram propor regras gerais para regular a arbitragem no cenário de violação dos direitos humanos, denominadas de “The Hague Rules on Business and Human Rights Arbitration[2]. Segundo Ursula, o modelo criado não é uma forma de substituição das formas de resolução de conflito já existentes, mas sim uma alternativa. Ademais, as regras podem ser usadas em procedimentos ad hoc ou institucionais, acoplando-se às decisões já tomadas pelas partes e/ou impostas pelas Câmaras.


A proposta, até então, parece tentadora, dado que levaria os benefícios da arbitragem, tais quais a especialidade dos árbitros, a celeridade do procedimento e a desnecessidade de se considerarem as fronteiras para um âmbito que merece atenção: os direitos humanos. Todavia, alguns pontos merecem destaque.


O primeiro deles é a forma de adesão das partes. Em regra, quando há uma violação de direitos humanos, não existe um contrato firmado, portanto, a possibilidade mais comum de fixação de arbitragem por cláusula compromissória restaria inviável. Porém, ainda há decisão por compromisso arbitral, sendo uma escolha das vítimas após instaurado o conflito. O estudo destaca também a possibilidade de inserção de cláusula compromissória em contratos celebrados com Organizações Não Governamentais (ONG), visto que é muito comum o apoio das ONGs às vítimas.


Uma segunda questão é a confidencialidade. Para o mundo corporativo, um dos maiores atrativos da arbitragem é a opção, muitas vezes já prevista em lei, da confidencialidade do procedimento. Em contrapartida, as vítimas, comumente, têm interesse na divulgação do acontecido, a fim de que seja registrado na memória, prezando pela sua não repetição. Neste ponto, destaca-se também que a Seção IV da The Hague Rules on Business and Human Rights Arbitration é totalmente voltada para a adoção da transparência no procedimento, não sendo, em tese, um ponto a ser negociado entre as partes.


Outro ponto sensível é o custo da arbitragem, já que, em regra, as vítimas não possuem capacidade financeira para arcar com a metade do valor despendido para a realização do procedimento e não é possível montar todo um sistema em que os árbitros e Câmaras atuem de forma pro bono na totalidade do tempo. Pensando nisso, o art. 53 da The Hague Rules on Business and Human Rights Arbitration adotou o modelo em que o perdedor arcará com todos os custos, podendo ser decidido de forma diferente pelo Tribunal Arbitral, considerando a participação de cada parte na decisão final proferida.


Seria possível pensar também no financiamento por terceiros, principalmente, as ONGs que, normalmente, já estarão envolvidas no procedimento como um todo. Caso seja feito dessa forma, o art. 55 das mencionadas regras de Haia determina que o financiador alheio ao procedimento seja revelado, a fim de manter o caráter de transparência e igualdade.


Por todo o exposto, conclui-se que a arbitragem é um caminho possível para a resolução de violações de direitos humanos, tendo em vista a sua vasta aplicabilidade, sem dificuldade em questões transfronteiriças, além da especialidade dos julgadores. Todavia, para ser um modelo totalmente aplicável, como nos casos comerciais, há um longo caminho a ser percorrido, dados os pontos destacados, que ainda precisam ser definidos, seja pela doutrina ou pela própria prática, solucionando-os conforme forem aparecendo nos casos concretos.

 

[1] Estagiária em Figueira de Mello, Faria e Torres Advogados. Aluna de graduação da PUC-Rio. [2] Disponível em: https://www.cilc.nl/project/the-hague-rules-on-business-and-human-rights-arbitration/, consultado em 20 de outubro de 2021.



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