Entrevista: Prof. Carlos Alberto Carmona (2 de 2)
- bernard1571
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Carlos Alberto Carmona é doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo, Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP, Sócio Diretor do escritório Marques Rosado, Toledo Cesar & Carmona Advogados e um dos mais renomados juristas brasileiros. Também é Professor do Mestrado Profissional em Direito dos Negócios e Arbitragem da FGV Direito Rio. E, de particular relevo, ele foi um dos três coautores do anteprojeto que conduziu à Lei Brasileira de Arbitragem (Lei nº 9.307/96).
Nessa entrevista – dividida em duas partes – o Prof. Carmona abordou sua trajetória profissional, comentou sobre a construção de sua carreira e opinou sobre outros temas relevantes ao futuro da arbitragem no Brasil e no mundo.
Moisés Rocha: Professor, foi muito incrível ouvir suas respostas à Julia. As perguntas dela foram mais focadas na sua trajetória, atuação profissional, etc.. Agora eu vou formular algumas perguntas que são mais voltadas para o instituto da arbitragem e para a sua visão sobre alguns pontos. E a primeira pergunta é: se o senhor pudesse modificar unilateralmente algum ponto da Lei da Arbitragem, qual ponto seria?
Prof. Carlos Alberto Carmona: Nossa, eu reescreveria o artigo 13! Já tenho até a nova redação. O artigo 13 diz que pode ser árbitro toda pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. Eu mudaria isso para dizer que pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que não tenha a desconfiança de qualquer uma das partes. Porque isso está dando margem a muita disputa; questões de revelação que estão criando mais polêmica do que o necessário. Não são nomeadas como árbitros necessariamente pessoas em quem você confia, porque os árbitros podem ser nomeados independentemente da tua escolha. São duas partes, A e B. A parte A vai nomear alguém que é da confiança dela, a parte B vai nomear alguém que é da confiança dela, mas que não é da confiança da parte A. Mas, isso quer dizer que não pode ser árbitro? Não existe isso. Eu acho que esse artigo induz a erro. Portanto, este artigo eu reescreveria. É algo simples, mas eu reescreveria, porque está dando muita confusão.
Outra coisa que, no futuro, também acho que vai ter que mudar é desfazer essa diferença entre cláusula compromissória e compromisso. E, a partir disto, começar a utilizar uma nomenclatura neutra: falar em convenção de arbitragem e ponto final. Não importa que seja compromisso ou cláusula. Retirar, portanto, aquele peso que ainda existe nos elementos essenciais e facultativos do compromisso arbitral. E, na verdade, esses elementos facultativos (do compromisso) são também importantes para a cláusula compromissória. Então, eu mudaria um pouco essa estrutura para nos livrarmos desse passado francês, dessa origem remota francesa, que fazia distinção entre a cláusula e o compromisso. Acho que hoje não precisa mais disso.
Moisés Rocha: Muito bom, professor. Realmente essas duas mudanças fariam sentido. Agora, indo para a segunda pergunta: existem alguns críticos atualmente que propõem que deveria haver maior publicidade e menos sigilo na atuação arbitral. O que o senhor pensa sobre isso?
Prof. Carlos Alberto Carmona: Eu sou totalmente contrário. Eu acho que liberdade é uma coisa típica da democracia. Demoramos tanto para conseguir isso, e essa gente quer impedir, o que é absurdo. Vejam só: qual é a ideia da publicidade? A publicidade gera mais transparência, mais controle, então quem quer transparência, quem quer controle, coloca isso na sua cláusula compromissória. Mas, se a arbitragem não envolve a administração pública, deixa fazer do jeito que quiser. Há erro de perspectiva. Alguns dizem o seguinte: “Olha, é muito bom ter publicidade, porque isso vai criar jurisprudência arbitral”. Eu penso que isso é uma grande balela. Se uma arbitragem é dirigida pela Fabiane, vou ter o maior interesse do mundo em saber qual foi a decisão que ela tomou. Mas se a arbitragem é regida pelo “Zé Mané”, eu não quero saber o que o “Zé Mané” pensa a respeito daquela questão jurídica que eu também tenho que decidir. Portanto, esta perspectiva de criar jurisprudência arbitral é completamente falsa, ela não faz o menor sentido. Em minha visão, deve-se deixar as pessoas fazerem do jeito que elas quiserem. Se você quer fazer sua arbitragem sigilosa, se você considera que isto é um valor importante da arbitragem, faça. Se você não quiser, tira a regra de sigilo. A Lei de Arbitragem não diz que a arbitragem é sigilosa. Ela diz que a arbitragem pode ser sigilosa. Portanto, é só uma possibilidade que a parte tem.
Agora, o Código de Processo Civil, no artigo 189, inciso IV – eu já falei tanto sobre esse artigo, que o decorei – diz que correm em segredo de justiça processos que digam respeito à arbitragem, se a arbitragem tiver a cláusula de sigilo. Aqui em São Paulo tem alguns juízes que entendem que isso viola a Constituição. Eles dizem: “Não, o processo tem que ser público.” Não, cara-pálida, tem que ser público o processo judicial, que é isso que está na Constituição. Processo arbitral não necessariamente precisa ser público. O artigo 189 não tem nada de inconstitucional. E sabe o que é pior? Juiz de primeiro grau pode deixar de aplicar artigo sob a afirmação de que ele é inconstitucional; mas o Tribunal de Justiça não pode. O Tribunal de Justiça só pode declarar a inconstitucionalidade de um dispositivo qualquer de lei federal se isto for objeto de decisão do Plenário ou do Órgão Especial. Aqui em São Paulo são 360 desembargadores, sendo 25 no Órgão Especial. Mas, o que acontece? Alguns desembargadores aqui fecham o olho e dizem: “A arbitragem, apesar de ter cláusula de sigilo, não vou aplicar o artigo 189, inciso IV, porque não é o caso de aplicá-lo.” O julgador de segundo grau não usa a palavra inconstitucional porque não pode. Então ele diz que vai deixar de aplicar o dispositivo legal. Mas o Supremo já disse que não aplicar dispositivo e considerá-lo claramente inconstitucional é a mesma coisa. Está errado. Não há nada de inconstitucional nesse artigo 189, inciso IV, do Código de Processo Civil. De qualquer maneira, dentro desses 150 projetos que estão no Congresso Nacional, tem um – que eu acho que é da Câmara dos Deputados – que quer revogar o artigo 189, inciso IV. Tomara que este não passe. É novo, é de 2025. Em resumo, temos lei, e, portanto, a minha ideia é que não há obrigatoriedade de publicidade.
Eu faria, entretanto, uma ponderação para as arbitragens que dizem respeito às questões societárias. Estamos falando de cláusulas estatutárias, né? Aquelas cláusulas compromissórias que estão nos estatutos das companhias, companhias abertas e, portanto, que dizem respeito a controvérsia dos sócios com a companhia ou entre os sócios, relativamente à companhia. Nesse caso, sim, a publicidade talvez seja relevante, porque nós temos interesses de terceiros que estão envolvidos nessas controvérsias. Imagine que você, sócio de uma sociedade que tenha uma cláusula estatutária como essa, queira promover a anulação de uma deliberação assemblear. Outros sócios minoritários talvez queiram também desconstituir esta deliberação assemblear. Eles teriam – tanto quanto você – legitimidade para figurar no polo ativo (e se quiserem ingressar no litígio teriam o status de litisconsortes ativos). Já o grupo majoritário, que aprovou essa deliberação que você quer anular, poderia ter interesse em figurar no polo passivo deste processo como assistente simples. E, para que a intervenção dos terceiros interessados possa ocorrer, tem que ter publicidade. Caso contrário, como é que eu vou saber se eu posso atuar no polo ativo ou se eu posso atuar no polo passivo? Então, para as arbitragens societárias, a cláusula de sigilo é inadequada. Se quiser pôr, ponha. E os regulamentos devem tratar deste tema, como acabou acontecendo com o CAM-CCBC, aqui de São Paulo, que tem regulamento específico para arbitragem societárias, dizendo que tem que haver publicidade. Está resolvido o problema, não precisa nem mexer na lei. É perfeito.
Profa. Fabiane Verçosa: Em uma dessas decisões que o Carmona mencionou, do Tribunal de Justiça de São Paulo, tem uma expressão que é realmente lamentável, que usa aquela frase famosa que “não há nenhum desinfetante melhor que a luz do sol”.
Prof. Carlos Alberto Carmona: O sol não é desinfetante, tem que explicar para esse pessoal que, para desinfetar, usa Pinhosol. Pinhosol é melhor que a luz do sol. É um desinfetante que é do tempo da minha bisavó. Mas, tem que ter a santa paciência com essas afirmações, essas frases que não fazem sentido, não faziam sentido antes, e hoje isso ainda não faz sentido.
Moisés Rocha: Muito bom. Professor Carmona, já se dirigindo para o final da entrevista, gostaria de fazer uma última pergunta, que é voltada mais à modernidade. A pergunta objetivamente é a seguinte: quais os impactos que os avanços exponenciais da tecnologia têm trazido para a arbitragem?
Prof. Carlos Alberto Carmona: Me dá até medo de falar sobre isso. Na sua geração, vocês não têm medo de inteligência artificial, de mexer em computador, mas, na minha geração, a gente morre de medo de apertar qualquer tecla e, de repente, desaparecer seu arquivo, e você não sabe onde é que ele foi parar e se você mandou a mensagem. As minhas filhas morrem de medo que eu mexa no Facebook. Nem entro mais no Instagram delas, porque senão elas falam: “Pai, não clica, senão você vai dar like”. E eu penso: gente, que horror, né, que vida! [risos] Mas, a inteligência artificial vai mexer com todos nós, e é claro que isso mudou a nossa perspectiva, até de pesquisa.
Nossa geração tem muita dificuldade de mexer em aplicativos. Não somos como vocês. Eu tenho muitos dicionários, tanto dicionários em português, quanto dicionários em inglês, italiano, entre outras línguas. Eu sempre gostei muito de dicionários, contudo, recentemente fui forçado a colocar todos na prateleira menos acessível de minha biblioteca, pois percebi que não se usam mais dicionários, usa-se o Google. Se tenho qualquer problema, eu entro em dicionário online, ou vou direto ao Google e a primeira resposta que ele me dá é feita com inteligência artificial. Vocês já viram isso, né? Só depois de mostrar o que a inteligência artificial recomendou, a internet te manda para os sites. Então, tudo isso, claro, vai mudar muito a nossa perspectiva, a nossa vida como um todo. Vai mudar inclusive a perspectiva de trabalho de vocês. No meu tempo de jovem advogado, eu tinha uma equipe de dez estagiários, que precisavam ir ao fórum todo dia. Hoje em dia você faz tudo isso no seu escritório. Você quase não precisa mais do estagiário. Passar pesquisas para o estagiário pedindo para que ele encontre algum julgado sustentando alguma tese específica: antigamente, o coitado do estagiário ia lá para o Tribunal de Justiça procurar no fichário e tal. Hoje em dia você mesmo procura na internet. É claro que isso tudo muda a perspectiva de trabalho. Muda inclusive a profundidade do seu trabalho. Porque naquele tempo, no meu tempo de jovem profissional do direito, era possível não conhecer uma decisão ou um novo entendimento do Supremo Tribunal. Inclusive (nem havia Superior Tribunal nos anos 80). Entretanto, se o Moisés me diz isso hoje [que não conhece uma decisão ou novo entendimento], diria que ele é pura e simplesmente incompetente. Que não pesquisou minimamente bem esta questão, porque, se pesquisasse, encontraria algo. Isso muda até mesmo a forma de redigir, de interpretar a lei. Tudo isso é uma consequência dessa nova era que nos aguarda.
Nós estamos vivendo apenas o começo da realidade que ainda se estruturará. Imagine, estava lendo uma notícia da Folha de São Paulo a respeito de um grupo de intelectuais que eram contra a possibilidade de aumentar o grau de complexidade dos programas de inteligência generativa. A crítica era fundada na preocupação de que, caso os programas começassem a conversar entre si, isso resultaria no fim da era que conhecemos. Seria o fim dos tempos. É ideia curiosa, imaginem. Daqui a pouco você está falando com alguém que não é alguém, que é, digamos, um programa.
Nós chegaremos em um ponto onde as pessoas terão de escolher o tipo de decisão que querem: uma decisão empática, moral, ou o fruto de mera replicação jurisprudencial. Agora, imagine, sabemos que a capacidade da inteligência artificial está atrelada à repetição, porque o input é exatamente a informação igual que vai gerar respostas iguais. Dito isso, seria um verdadeiro retrocesso mascarado de avanço, uma vez que o Direito ficará cristalizado, estagnado, quando essencialmente não deve sê-lo. Seria retirar a mutabilidade da jurisprudência. Entretanto, todos esses são problemas que precisaremos resolver posteriormente ainda não nos atingiram com força suficiente para que nos preocupemos. Eu espero não estar aqui para ter que resolver isso tudo. Isso aí é problema de vocês. [risos] Talvez esse mecanismo que agora consideramos uma evolução tecnológica nos leve justamente a esse retrocesso. Uma vez que a IA é um processo generativo, decorrente destes inputs, estamos criando um verdadeiro ciclo vicioso. Se realmente formos acolher a IA no Direito, precisamos encontrar mecanismo para fazer uma espécie de distinguishing. Esse distinguishing hoje é muito rudimentar. A inteligência artificial se alimenta da repetição de experiências. Se os dados forem iguais, ela basicamente repetirá a experiência. E não sei até que ponto os programas de inteligência artificial são capazes de ter a mesma visão que juiz teria, o que chamamos de empatia. A IA não é capaz de entender a verdadeira essência da igualdade, que seria tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual.
Espero que tenha sido útil esse nosso encontro. Na verdade, eu acho que esse contato, essa convivência, é enriquecedora e provoca alguns temas. Em algum momento vocês escreverão o TCC. Vocês chamam de TCC na FGV? Bom, chamem como quiserem, mas o ponto comum do TCC é que esse depende de ideias. Essas conversas são boas, porque, de repente, quem sabe, o interesse dormente de algum de vocês por algum dos temas aqui abordados foi despertado. É enriquecedor, até para delimitar a área profissional.
Profa. Fabiane Verçosa: Certamente foi enriquecedor. Obrigada por esta conversa tão rica e maravilhosa, Carmona. Muito obrigada, mesmo, pela sua atenção.





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