Entrevista: Prof. Carlos Alberto Carmona (1 de 2)
- bernard1571
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Carlos Alberto Carmona é doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo, Professor Doutor da Faculdade de Direito da USP, Sócio Diretor do escritório Marques Rosado, Toledo Cesar & Carmona Advogados e um dos mais renomados juristas brasileiros. Também é Professor do Mestrado Profissional em Direito dos Negócios e Arbitragem da FGV Direito Rio. E, de particular relevo, ele foi um dos três coautores do anteprojeto que conduziu à Lei Brasileira de Arbitragem (Lei nº 9.307/96).
Nessa entrevista – dividida em duas partes – o Prof. Carmona abordou sua trajetória profissional, comentou sobre a construção de sua carreira e opinou sobre outros temas relevantes ao futuro da arbitragem no Brasil e no mundo.
Júlia Aspesi: Em primeiro lugar, professor Carmona, muito obrigada por participar dessa entrevista para o nosso blog. É uma grande honra ter você aqui. Eu e Moisés temos aqui uma lista de perguntas. Foi muito difícil escolher; todos os alunos engajaram muito e tinham várias perguntas ao senhor. Mas, tentamos sintetizar aqui os principais questionamentos. E o primeiro e mais importante é: como tudo começou? Como você começou seus estudos sobre arbitragem?
Prof. Carlos Alberto Carmona: Olha, é assim: no início não havia luz e era tudo misturado. Eu vou contar para vocês uma historinha rápida. A arbitragem é uma coisa que no Brasil não é nova, né? No período imperial, já tínhamos a Constituição do Império, que continha dispositivo sobre a arbitragem. Mas era aquela coisa que estava lá para inglês ver. Nós nunca tínhamos usado a arbitragem no Brasil. Após o Código Comercial de 1850, houve um período de dezesseis anos em que a arbitragem comercial realmente fluiu. Mas, depois disso – e apesar de haver previsão nos Códigos de Processo estaduais - pré-unitários, portanto -, no Código de Processo de 1939, no Código de Processo Civil de 1973 e no Código Civil de 1916 – o instituto praticamente não foi utilizado. Então, era necessária uma providência para tentar ressuscitar a arbitragem no Brasil.
Isso aconteceu pela primeira vez em 1980, quando o Ministério da Justiça encomendou um projeto de lei. Quem regeu a comissão desse anteprojeto, por coincidência, foi um desembargador do Rio de Janeiro, Desembargador Severo da Costa. A comissão regida por ele produziu um anteprojeto bastante interessante, que acabou não sendo mandado para o Congresso Nacional.
Repetiu-se a iniciativa em 1985, com um anteprojeto encomendado pelo Ministério da Desburocratização (ministro Hélio Beltrão). Para tal, foi nomeada uma nova comissão, uma comissão de juristas, de comercialistas, que produziu um projeto bom também, com base no projeto anterior. Em 1986, o projeto ficou pronto, mas não foi nem para o Congresso Nacional. Foi publicado no Diário Oficial, porém ninguém se interessou e a coisa acabou morrendo.
Em 1988, houve uma nova iniciativa, na qual foi nomeado alguém lá de Brasília para fazer uma inserção no Código de Processo Civil. Contudo, foi uma iniciativa péssima, tanto que os comentários que este anteprojeto suscitou foram todos negativos; também isso não foi mandado para o Congresso Nacional.
Em 1990, houve uma iniciativa do Instituto Liberal, que era comandado pelo Petrônio Muniz, de Recife. Ele lançou a Operação Arbiter - uma iniciativa popular, não mais uma iniciativa de governo - para montar um anteprojeto de lei de arbitragem. E aí, aquelas coincidências, né? A iniciativa vingou e foi organizada uma reunião aqui em São Paulo, na Associação Comercial. A professora Ada Pellegrini Grinover, um dos maiores nomes do nosso direito processual, me telefonou, intimando: “Olha, vai ter lá uma reunião sobre arbitragem, só que ninguém se interessa por isto. Vai lá você, e veja se vale a pena.” Eu fui, e lá eu conheci o Pedro Batista Martins, que vinha do Rio, além de também ter conhecido a Selma Lemes. Perguntaram lá quem queria participar de uma iniciativa de tentar minutar um anteprojeto de lei. Então, levantei a mão, e o Pedro e a Selma também. A partir disso, nos conhecemos, nos apresentamos: o Pedro tinha acabado de publicar um trabalho bacana, aí no Rio, sobre arbitragem comercial, enquanto a Selma tinha acabado de voltar de Paris, da CCI [Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional]. Eu tinha terminado o rascunho da minha tese de doutoramento sobre a arbitragem no Código de Processo Civil, que defenderia logo depois.
Nos encontramos, começamos a trabalhar numa minuta. Era um tempo que vocês nem imaginam: a gente trabalhava com fax, mandava as minutas. Eu mandava para o Pedro, no Rio, daí ele tinha que ver rápido, porque aquele fax desaparecia em uma semana, o texto ali sumia. Era um negócio que parecia ser pré-histórico. Fizemos um anteprojeto em três meses, o qual apresentamos para uma assembleia convocada de novo pelo Petrônio Muniz. Deram uma ou outra sugestão; a gente aceitou algumas, outras não, e, finalmente, o projeto ficou pronto. Nós precisávamos de alguém para apresentá-lo, e escolhemos o senador Marco Maciel.
O Marco Maciel era senador da República pelo estado de Pernambuco, e ele era muito ligado ao Instituto Liberal e ao Partido Liberal. Depois ele até foi guindado à vice-presidência da República, mas, na época, era senador. Ele foi sensacional, a grande engrenagem desse anteprojeto de arbitragem. Apresentamos o projeto no Senado e aprovaram em nove meses.
Depois, nós mandamos isso para Câmara dos Deputados. Entretanto, na época, havia o processo de impugnação do Collor. Logo, a pauta da Câmara dos Deputados estava trancada. Por isso, aguardamos dois anos até que a Câmara dos Deputados começou realmente a trabalhar com esse anteprojeto de lei.
Em 1995, começou a tramitar na Câmara dos Deputados. Os partidos de oposição eram partidos de esquerda. É até uma coisa engraçada: na época, os partidos de esquerda eram conservadores, então nós tínhamos muita dificuldade de mostrar um instrumento moderno como a arbitragem, porque eles consideravam isso como uma forma de capitalismo exacerbado. Enfim, eles apresentaram doze emendas, que eram terríveis, todas elas supressivas da agilidade do anteprojeto. A gente derrubou todas elas, foram superadas, e, finalmente, o anteprojeto foi aprovado, virando a Lei 9.307, de 1996. O Fernando Henrique Cardoso promulga a lei, e o Ministro Nelson Jobim, que era o Ministro da Justiça, assinou embaixo. Portanto, a gente achou que estava tudo resolvido.
Mas, logo em seguida, entrou aquele pedido no Supremo de inconstitucionalidade, declaração incidental de inconstitucionalidade, que bloqueou a lei por mais cinco anos. Só em 2001 é que realmente nós conseguimos fazer com que a arbitragem passasse a se desenvolver no Brasil.
E deu no que deu, uma experiência vitoriosa. Nós mesmos, que éramos os autores do anteprojeto, tínhamos lá nossas dúvidas se ia vingar. Era uma novidade, a gente não sabia o que ia acontecer, mas deu tudo certo. Tão certo que, em 2013, foi convocada uma comissão para reformar a Lei de Arbitragem, e uma das maiores iniciativas dessa comissão de reforma foi a adição no artigo primeiro e no artigo segundo da arbitragem com a Administração Pública. Ou seja, até mesmo a Administração Pública, que nem era o nosso foco, acabou encampando a ideia da arbitragem. Portanto, é uma ideia vitoriosa e uma lei muito boa.
Quando eu digo que a lei é muito boa, eu não quero ser cabotino. Pode até parecer que eu estou fazendo autoelogio, mas não é. O nosso trabalho (meu, da Selma e do Pedro) foi mais ou menos de coletar o que havia de mais moderno na legislação estrangeira e melhorar, adaptando para a realidade brasileira. Então, a gente teve o nosso caminho muito facilitado, e a nossa lei ficou muito boa, porque nós pegamos tudo que havia de melhor na Itália, na Espanha, em Portugal, países que tiveram o mesmo problema que o Brasil, de ter uma lei de arbitragem, mas não ter prática de arbitragem, e colocamos todas estas ferramentas modernas na lei. Já sabendo quais eram os problemas, a gente conseguia se desviar das armadilhas. Então, a nossa lei, que é uma lei monista, não faz diferença entre a arbitragem doméstica e a arbitragem internacional, acabou sendo fator de desenvolvimento da arbitragem no país. Ou seja, uma experiência que deu certo.
Mas vigiar nunca é demais, porque estão em andamento no Congresso Nacional, pasmem, 150 projetos de lei que dizem respeito à arbitragem. Os nossos políticos - não tendo nada melhor para fazer - querem estragar o que está bem-feito. Até no projeto de reforma do Código Civil - que já é uma coisa assim complicada, né - há treze dispositivos que dizem respeito à arbitragem. Gente, nós temos uma lei que estipula que leis especiais que regem determinados diplomas não podem ser modificadas por leis gerais. Como o próprio Código Civil é uma lei geral, não pode mudar a Lei de Arbitragem, que é uma lei específica, e o pessoal quer mudar. Então, vai desde essas coisas básicas até aquele malfadado projeto da Câmara dos Deputados, que queria limitar inclusive quantas arbitragens um árbitro poderia gerenciar. Imaginem, o projeto diz que o árbitro não poderia ter mais do que dez arbitragens ao mesmo tempo. É a mesma coisa que eu dizer que o advogado não pode ter mais do que quinze causas. De onde essa gente tira essas ideias malucas? De qualquer maneira, vamos lá, precisa sempre controlar. O CBAr, que é o Comitê Brasileiro de Arbitragem, tem um grupo que fica de olho nas atividades do Congresso Nacional. Então, eles estão sempre ali para evitar que essas iniciativas bizarras possam vingar. Nossa, eu falei muito, né? Pergunta tão curta, olha que resposta longa.
Profa. Fabiane Verçosa: Sem problema! A ideia é essa, a gente sabia que você ia desenvolver bastante cada resposta. Você é uma pessoa que trabalhou desde os primórdios da arbitragem, nessa nova fase brasileira. Assim, como você muito bem mencionou, desde o Império tinha arbitragem, mas passou mais de cem anos sem. Portanto, você trabalhou ativamente desde o início do novo momento arbitral brasileiro. Por conta dessa vasta experiência, não tinha como você responder em cinco minutos.
Prof. Carlos Alberto Carmona: Não é nem só trabalhar. É pior que isso. Eu sou quase como um dinossauro. Aquilo que vocês leem nos livros, eu estava lá, eu vi, eu participei, então é uma experiência vivida, não é? Não é só uma experiência lida, ou aprendida por ouvir dizer, né? Eu estava lá, eu vi. E a minha visão do Congresso Nacional, eu já deixo isso antecipado para ninguém ficar mal impressionado, é muito negativa. Eu trabalho com o Congresso Nacional há muitos anos, trabalhei com o Congresso Nacional nas mini-reformas do Código de Processo Civil de 1973, e a minha impressão é realmente ruim. E a gente tem que estar sempre lidando com isso, e tomando cuidado com os pequenos golpes de mão. Olha, basta ver os jabutis, você sabe o que que é o jabuti, né? São essas iniciativas de colocar dentro de projetos de lei específicos alguma coisa que nada tem a ver com a ementa, com aquilo que está sendo eventualmente criado ou modificado, e assim, passa um pouco despercebido. Jabuti, por quê? Porque o Jabuti não sobe em árvore, né? Alguém coloca ele lá, então é mais ou menos isso. Iniciativas muito malsãs estas de deputados e senadores que tentam quase que ludibriar o Congresso Nacional colocando estas pequenas armadilhas nos projetos de lei. Tem que estar sempre olhando ali com lupa, para ver se nada disso aí escapa. E a arbitragem, como é uma experiência vitoriosa, não pode ser mutilada. A Lei de Arbitragem é um instrumento técnico, forma um sistema separado do Código de Processo Civil, não pode ser mexida, não pode ser quebrada. Então qualquer ruptura nessa lei, que é técnica, pode fazer diferença, daí a gente ter que ficar sempre vigiando, né?
Profa. Fabiane Verçosa: É. E aí nessa linha que você falou, lembrando aquela história que o professor Marcelo Huck falou lá na abertura da Competição Brasileira de Arbitragem, aquela questão do passarinho, né? Depois, se vocês quiserem, eu conto a história toda, mas o resumo da história é: ele está vivo, mas toma cuidado com ele, devagar que o santo é de barro, né? Não dá para achar que não precisa mais ter cuidado porque, como você falou, toda hora tem iniciativas, né?
Prof. Carlos Alberto Carmona: E são iniciativas que a gente não sabe bem a que é que se destinam. Esse é um grande problema, não são iniciativas claras. Muitas vezes isso é trabalho de lobby. Então, por exemplo, a tentativa de levar a arbitragem aos tabeliões. Qual é o sentido de permitir ao tabelionato que faça a arbitragem? Isso não tem nada que ver com atividade de tabelião. Mas é assim: como o tabelião está perdendo espaço por conta de uma série de modificações da nossa sociedade, então tenta se fazer com que sobrevivam com outras iniciativas. Mas, isso não tem cabimento, isto é retrocesso para o país. Então a gente precisa tomar realmente muito cuidado para não quebrar esta perspectiva harmônica da Lei de Arbitragem. Foi muito difícil criar esse sistema, ele não pode ser rompido.
Profa. Fabiane Verçosa: E você falou da comissão do CBAr, a Comissão de Assuntos Legislativos, que trabalha fazendo notas técnicas. Eu trabalhei muitos anos nessa comissão. Larguei ano passado porque não conseguia mais dar conta de tantos assuntos. Mas, como você falou, era cada coisa que aparecia lá, tanta maluquice. Esse negócio mesmo dos tabeliães: eu mesma tinha dado algumas notas técnicas sobre esse assunto, só que toda hora voltava. Voltou tanto que conseguiram aprovar, né? Tem uma lei agora que permite.
Prof. Carlos Alberto Carmona: Então, é uma coisa assim tremenda, o CBAr está fazendo um trabalho magnífico, né? Estas que são iniciativas menos ofensivas não chateiam tanto, não preocupam tanto, mas algumas são muito destrutivas, como este projeto que eu mencionei, que pretende limitar a atividade dos árbitros, que pretende limitar, por exemplo, você fazer parte de um painel e ao mesmo tempo ter um outro painel com alguns dos mesmos co-árbitros ou presidente. Isso é muito prejudicial ao andamento da arbitragem. E aí nós ficamos um pouco ridicularizados no âmbito das outras nações, né? A arbitragem está se desenvolvendo tão bem, o Brasil hoje é um ator internacional relevante, é o segundo ou terceiro país com mais procedimentos na CCI. A gente não pode permitir essas “pérolas” no nosso Congresso Nacional. Então, esta vigilância é muito importante.
Era a mesma perspectiva que tinham alguns com relação à criação dos Juizados Especiais de Pequenas Causas. A Lei 7.244/84, precursora dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Diziam “não, agora nós vamos desanuviar o Poder Judiciário.” Não, não ia e não desanuviou, foi o contrário. Aqueles que nunca iriam ao Poder Judiciário acabaram indo, por conta dos Juizados. Então os Juizados foram na verdade, um atrativo para a solução de litígios. A arbitragem funcionou da mesma maneira: foi um ímã para manter no Brasil causas de grande complexidade, por exemplo, e para atrair outro grande número de causas societárias, de causas comerciais, e não para desanuviar o Poder Judiciário. É o contrário.
Profa. Fabiane Verçosa: É perfeito você fazer esse comentário para alunos de graduação tão jovens, de segundo e quarto período, porque há pessoas formadas e bons advogados que pensam isso, que a arbitragem é para isso, é para desanuviar, para desafogar o Judiciário.
Prof. Carlos Alberto Carmona: Olha, eu vou dizer mais: é por isso que a gente já não usa mais aquela expressão “meio alternativo de solução de controvérsia”. Porque ao usar essa expressão - “a arbitragem é um meio alternativo” - você está imaginando que o meio natural de solução de litígios seja o Judiciário. E aí você procura alternativas ao Poder Judiciário, mas não é isso. Hoje a gente diz que a arbitragem é o meio adequado de solução de controvérsias. Existem controvérsias que são próprias para solução por arbitragem, porque juiz togado não dá conta. Não estou falando do juiz brasileiro não, estou falando do juiz dinamarquês, que é bonito, é rico, é loirinho, tem olho azul, quer dizer, ele não dá conta disso. Por quê? Porque o sujeito é juiz. Ele tem que julgar tudo, e ele tem que saber um pouco de cada coisa. Causas mais complexas, naturalmente, não são próprias para o Poder Judiciário, para qualquer poder judiciário. Isso não depõe, portanto, contra o nosso Poder Judiciário. É um erro dizer: “ah, o Poder Judiciário brasileiro não é bom, então eu vou para arbitragem”. Errado, não é essa a concepção. Ninguém vai para o Poder Judiciário de lugar nenhum para causas de acordo de acionistas, para grandes causas comerciais de complexidade, domésticas ou internacionais, porque nenhum Poder Judiciário dá conta disso. Então, na verdade, nós estamos criando um método para resolver melhor determinado tipo de litígio. É isso que é arbitragem.
Profa. Fabiane Verçosa: Perfeito, maravilha. Obrigada, Carmona, obrigada mesmo. Julia, pode passar para a segunda pergunta por favor?
Júlia Aspesi: Muito obrigada, professora. Professor Carmona, muito obrigada. Isso é uma aula cada pergunta que nós perguntamos para o senhor.
Prof. Carlos Alberto Carmona: Não era a minha intenção, mas você está falando. [risadas]
Júlia Aspesi: Por favor, que seja, porque cada pergunta é um baú de tesouros. Então, bom, eu gostaria de saber como a promulgação da Lei de Arbitragem alterou a sua trajetória profissional. Obviamente, alterou o mundo para nós, mas, pessoalmente, o que mudou para o senhor?
Prof. Carlos Alberto Carmona: Alterou o meu mundo porque, na verdade, quando, trinta anos atrás, a lei foi editada, eu nem sabia se essa arbitragem ia dar certo ou não. Eu falei: “ah, eu cumpri o meu papel, eu estudei muito arbitragem, eu tinha ganho uma bolsa da Fundação Rotary, e eu passei ano e pouco na Itália, estudando, justamente no momento em que a lei de arbitragem italiana foi promulgada: a Lei nº 28, de 1983. E eu estava lá. Então eu peguei toda a discussão antes, durante e depois da lei, o que foi muito bom para esse meu aprendizado. Eu sabia que era sobre isso que eu queria escrever no meu doutorado. Então, quando a lei foi publicada, eu pensei: “bom, a minha missão está cumprida, eu usei aquele conhecimento que eu fui adquirindo para contribuir para o país, quem sabe”. E, quando a arbitragem começou a dar certo, a minha atividade profissional começou a ser praticamente voltada a tudo que diz respeito à arbitragem.
Eu passei a atuar como advogado em arbitragens, eu passei a atuar como parecerista em arbitragens e passei a atuar como árbitro nas arbitragens. E aí, cada vez mais, eu fui me dedicando mais à arbitragem e menos ao processo judicial. Hoje, eu basicamente trabalho com arbitragem e com pareceres. Quer dizer, a minha advocacia hoje é totalmente voltada à arbitragem.
Júlia Aspesi: Perfeito professor. Bom, e justamente sobre a sua atuação, como é a sua rotina profissional e quais são as principais dificuldades que o senhor enfrenta?
Prof. Carlos Alberto Carmona: Olha, quando você fala em arbitragem, você tem vários trabalhos diferentes para realizar, dentro dessa perspectiva de processo arbitral. Então, primeiro, você pode um ser secretário de tribunal arbitral, e normalmente é assim que os jovens começam, ou os jovens ainda no estágio profissional, ou os jovens advogados, e acabam trabalhando com tribunal arbitral, onde eles vão aprendendo como é que funciona a arbitragem por dentro.
Você pode trabalhar como assessor de uma câmara de arbitragem, uma entidade que administra arbitragens, e você ali vai ver como é que a câmara trabalha, como a CCI, como o CBMA aí no Rio de Janeiro, como a Câmara FGV aí no Rio de Janeiro, como a CAMARB, onde vocês atuaram nesse Moot aqui em São Paulo, no CAM-CCBC, CIESP/FIESP aqui de São Paulo, que são câmaras importantes. Você atua dentro da câmara e participa da administração.
Depois, você pode trabalhar como advogado, desde advogado assistente numa grande equipe de advogados até o leading counsel, que é o sujeito que vai estar ali na “frente de batalha”.
Dali, você pode passar para árbitro, e você atua como coárbitro, membro de painel, ou como presidente de tribunal arbitral, e tudo isso é atividade na arbitragem. Para cada uma dessas atividades, o seu problema.
Como árbitro? Bom, primeiro, você tem que ter conhecimento bastante grande, prática muito boa, de arbitragem, mas do direito material também. Porque, senão, você é saco de vento, né? Não adianta nada. Se você sabe muito bem como conduzir uma arbitragem, mas não conhece o direito comercial, direito societário, direito civil, não vai funcionar. Com o tempo, você vai se especializando em determinado tipo de controvérsias. Vai conhecendo os regulamentos das câmaras, aprendendo como é que elas estão funcionando e como é que você participa desse funcionamento. Tem que montar a sua equipe dentro do escritório, sabendo que a complexidade do Direito é monumental. E não estou falando do direito estrangeiro; estou falando do nosso direito, né? Nós temos um verdadeiro “carnaval legislativo”. Então, conhecer as leis já é um grande sacrifício. Saber como é que essas leis operam é sacrifício dobrado. Você tem que ter uma boa equipe, portanto. Tudo isso vai somando dificuldades em cada uma das suas atividades.
E eu vejo hoje a função de advogado dentro da arbitragem. Não existe mais aquele advogado que vem sozinho representando um cliente num processo arbitral. Ele vem sempre com um time. Tornou-se usual isso, em arbitragens de médio e grande porte. Tem um grande grupo de pessoas trabalhando, dada a complexidade desses processos. Você precisa aprender, portanto, a atuar em equipe. E, se você é advogado, precisa ter conhecimento bom de direito estrangeiro, especialmente de ordenamentos jurídicos de sistemas diferentes do seu, porque o processo arbitral, ele é um processo de síntese. Então, não é uma repetição daquilo que a gente vê no Código de Processo Civil, que, aliás, nem se aplica na arbitragem. Mas, ele é uma simbiose de mecanismos típicos de diversos processos. Então, tudo isso significa estudo, significa conhecimento, significa abertura, porque a arbitragem é um processo de criação. Como você não tem nos regulamentos uma dicção para cada ato processual, como acontece no Código de Processo Civil, há espaço muito grande para que os advogados criem o processo adaptado à sua necessidade. Isso significa que você tem que ter a habilidade de conversar com o advogado da parte contrária. Nossos alunos precisam ser ensinados a uma nova atividade, que é diferente daquela típica do processo judicial. E isso tudo ocupa espaço. Gente, o curso de Direito toma só cinco anos. Onde é que você encaixa tanta matéria? Então aí entram os Moots, entram os exercícios, entra este exercício que nós estamos fazendo aqui, essa conversa, porque não há tempo dentro da grade curricular para informar tudo o que vocês vão precisar para poder atuar nessas várias perspectivas, dentro do que eu chamo de processo arbitral. É difícil, portanto, né? Agora, é importante que vocês se dediquem a estas atividades, porque elas são uma preparação para a vida real.
O Moot hoje para mim é uma grande escola. Todo aluno deveria ser obrigado a participar de algum Moot, porque, depois que você passa por essa experiência, acontecem duas coisas: primeiro, você percebe a necessidade de estudar mais, de entender mais; e, segundo, você perde o medo. Eu acho muito bacana essa perspectiva de você saber que consegue falar, coisa que nós da faculdade não ensinamos. Nosso processo é escrito. Qual é o exercício verbal que nós temos hoje dentro do nosso processo estatal? A sustentação oral nos tribunais? O momento da audiência, onde o advogado faz algumas perguntas (e olhe lá)? O processo arbitral é permeado de oralidade. Então é uma experiência interessante, e acho que todo aluno que quer participar desse mundo luminoso da arbitragem, tem que experimentar o Moot. É uma experiência inesquecível e é para toda a vida.
Profa. Fabiane Verçosa: Carmona, foi muito bom você ter falado isso e também, na linha do que você mencionou mais cedo, também queria fazer um approach de como é importante o Moot. Você acabou de falar que, quando se vai para audiências de arbitragem, nunca está só o advogado, né? Está sempre uma equipe e, às vezes, não cabe nem na sala, né? E a nossa equipe da Competição Brasileira de Arbitragem esse ano tinha treze alunos. Tinha quatro oradores, mas outros nove pesquisadores, porque, como você falou, é muito difícil, é muito intrincado, você precisa estar super afiado, precisa saber tudo. Então, não tem como você ter pouca gente; tem que ter muita gente e acho que eles vivenciaram isso.
Prof. Carlos Alberto Carmona: Eu acho super importante, Fabiane, que eles entendam que isso não é porque se trata de um exercício. Isso acontece na vida real. As pessoas vão em time mesmo, né? E esses times não são só de advogados. É um time muito híbrido. Eu já tive arbitragens em que o time era composto por advogados, pelo leading counsel, os advogados sêniores, os advogados assistentes, os estagiários – que sempre estão ali –, os peritos que estão ajudando na questão dos fatos técnicos – às vezes é o perito contador e um perito de engenharia –, e até psicólogo. Eu até me lembro bem de um caso em que atuei como árbitro, onde os dois times tinham psicólogos. Depois que acabou a audiência, eu perguntei: “o que que vocês querem com o psicólogo?”. E responderam que os psicólogos estavam observando os árbitros, para verificar se eles estavam prestando atenção no que diziam os advogado, conferindo se o gestual dos advogados estava incomodando os julgadores, se o advogado estava sendo monótono, se estava irritado porque o advogado estava falando muito alto. Ou seja, o psicólogo estava ali para alertar os oradores, ou sejam, os advogados, sobre como conduzir audiência. “Olha, está irritado; olha, não insista, porque ele está ficando aborrecido; ele já entendeu esse ponto, então passa para outro”. Super interessante. Quer dizer, o psicólogo neste contexto é um sujeito que está analisando e está informando os advogados como é que o tribunal arbitral está percebendo todo aquele mecanismo da audiência. Fantástico! Então, tudo faz parte da grande equipe de arbitragem. E quanto mais sofisticado o processo, mais profissionais de áreas diferentes eu vou ter dentro da equipe.
Júlia Aspesi: Professor Carmona, o senhor respondeu a minha outra pergunta. Eu ia a perguntar qual conselho o senhor daria para o estudante, e o senhor já respondeu. Então, eu vou emendar uma outra pergunta, que nós tivemos muita curiosidade, porque tanto eu quanto a Ana nós pensamos em progredir no caminho da arbitragem, né? E, nos tempos de hoje, como se inicia uma carreira da arbitragem? O que o senhor recomendaria? E quando começar a atuar como árbitro?
Prof. Carlos Alberto Carmona: Olha, são duas coisas bem diferentes. Primeiro, como começar, que eu acho que é a grande pergunta para vocês: escritórios que lidam com arbitragem. Ou você vai para um grande escritório, que tem normalmente uma área de arbitragem, vão ver se consegue encontrar uma vaga na equipe de arbitragem. Ou então, numa experiência bem diferente, vai para escritórios de pequeno e médio porte. Pode se engajar como estagiário nesta atividade, ou auxiliar o trabalho de um advogado que atua como árbitro, ou auxiliar a equipe do escritório que trabalha como advogado dentro das arbitragens. É aí que começa a carreira de vocês.
Agora, como é que alguém se transforma em árbitro? Olha, não há curso de formação de árbitros. Isso não existe. Você vai ser árbitro porque a sua especialidade, a sua capacidade e a sua projeção profissional, vão recomendar que as pessoas confiem em você e te nomeiem para eventualmente trabalhar como o julgador de casos mais ou menos complexos. Normalmente o jovem – e jovem aí é o sujeito que já tem entre seus trinta e cinco e quarenta anos de idade – vai ser nomeado para a primeira arbitragem dele, que vai ser uma arbitragem de valor menor. A própria CCI tem esse estímulo de, em arbitragens de menor valor, indicar esses profissionais, que já têm alguma experiência em arbitragem, trabalham em escritórios, já estão desenvolvendo a sua capacitação para trabalhar em arbitragem, para que figurem em sua primeira experiência como árbitros. Dali, se você se portar bem, se você realmente impressionar as partes, é aquela indicação boca a boca. Olha, a Julia é ótima, administrou super bem aquela arbitragem, lidou bem com problema dos advogados, com o atrito dos advogados na audiência, foi rápida, a sentença dela foi muito boa. É isso que vai fazer com que você seja indicada de novo, e aí a sua carreira como árbitra flui.
Mas eu quero deixar uma coisa clara: carreira de árbitro é uma contradição, não existe. Quer dizer, não há uma carreira de árbitro, como não há uma profissão de árbitro. Árbitro é uma função. Você vai ser advogada, você vai ser professora, engenheira ou arquiteta, e eventualmente tem uma causa em que a sua expertise serve para resolver determinado problema. É assim que você vai acabar sendo nomeada para funcionar dentro de tribunal arbitral. Não há carreira de árbitro, não há profissão de árbitro. Existe é uma função. Você, naquele processo, vai servir como julgador, mas no outro você vai servir como advogada, no outro vai ser como parecerista, e assim vai. É o que a gente chama de revolving door, ou double hatting, né? E é isso que é bonito da arbitragem. Porque o que a gente quer do árbitro é que ele não seja como um juiz. Parece uma contradição isso, né? Mas, o que é o juiz? O juiz é o sujeito que ingressa na carreira, e nunca mais ele vai participar de uma assembleia de acionistas, nunca mais ele vai redigir contrato, nunca mais ele vai redigir testamento, nunca mais ele vai lidar com o cliente. Ele não sabe como é a vida da advocacia. E é correto que assim seja, porque a carreira dele é separada. Ele vai ser só julgador. O árbitro não. O árbitro é aquele interlocutor a quem você não precisa explicar como é que funciona uma assembleia de acionistas, a tensão entre os acionistas, como é que um closing é resolvido num grande negócio de compra e venda de ações, de M&A, Ele participa, ele sabe. Então você tem um interlocutor válido para o seu tipo de litígio. Ele sabe como é que determinadas cláusulas são redigidas. Ele sabe que, de repente, uma cláusula já se sabia que ia dar problema. Mas, ou celebrava o contrato com aquela cláusula, ou o negócio não se realizava. O juiz não sabe disso. Não é uma crítica, veja, são características diferentes. Para julgar despejo, eu não preciso saber como é que o contrato de locação é celebrado. Mas para julgar uma causa de M&A, para julgar acordo de acionistas, é preciso ter a prática. E quando eu nomeio um advogado para ser julgador, que é um sujeito que participa desse mercado, eu quero ter um interlocutor válido. Por isso é que é bacana esse double hatting. Hoje o sujeito é árbitro, mas amanhã ele está advogando, depois de amanhã ele é parecerista. Portanto, ele é sujeito de mercado, e eu tenho com quem conversar, ele compreende a minha linguagem, coisa que, às vezes, o juiz não compreende.
Júlia Aspesi: Professor, muito obrigada. Sua carreira realmente é inspiradora. Eu espero que, um dia, tanto eu quanto Ana e os meus colegas, nós consigamos seguir os seus passos. Então, é maravilhoso aprender com você. Eu estou no meu segundo ano de graduação, né? Então, assim, tem muito chão pela frente.
Prof. Carlos Alberto Carmona: Tem, mas você já sabe qual é a trilha, né? Onde começar. Vocês aí na FGV, e eu acho isso muito bacana, vocês têm programa, uma grade curricular, que desincentiva o estágio antes do terceiro ano, que é o sexto período de vocês. O que é ótimo, porque eu acho que o estágio tem que ser nos últimos dois anos, mesmo. Aí, quando você estiver na hora de fazer estágio, escolhe o escritório que esteja na área onde você quer militar. Se você se encantar pela arbitragem, gostou dessa experiência de Moot, por exemplo, procura escritório que possa te satisfazer. Se você não gosta de estruturas grandes – eu, por exemplo, nunca me adaptei com escritórios com muita burocracia; sou muito rebelde para essas coisas – vai para boutique, onde você vai ter contato direto e diuturno com aquele que está trabalhando dentro de arbitragem. Claro que as causas vão ser diferentes, o ritmo vai ser outro, mas tem espaço para todo mundo. É questão de você procurar onde é que você se adapta melhor e investir nisso.
Júlia Aspesi: Deus te ouça, professor. Obrigada. Foi um prazer!
A segunda parte – abordando aspectos relativos ao futuro da arbitragem no Brasil e no mundo – estará brevemente disponível aqui no FGV Blog de Arbitragem.





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