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Reforma das Regras da IBA para a Produção de Provas em Arbitragem Internacional

Guilherme Rizzo Amaral[1]


Take nothing on its looks; take everything on evidence. There's no better rule”.

(Mr. Jaggers, em Charles Dickens, Great Expectations)


1. Introdução


“Há importantes diferenças entre a busca da verdade nas cortes e a busca da verdade em laboratório”. Esta frase, dita por Justice Blackmun, da Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals, Inc. (1993), pode muito bem ser aplicada à arbitragem. Restrições envolvendo confidencialidade, pressão pela resolução rápida das disputas e ausência de neutralidade nas narrativas das partes são apenas algumas das dificuldades impostas à determinação da verdade no procedimento arbitral.


Por outro lado, já se afirmou que a maioria das arbitragens se decide com base em questões de fato e não em questões de direito.[2] A descoberta dos fatos, portanto, é central à arbitragem, que deve focar não apenas na simples resolução de disputas, mas na justa resolução de disputas. Justiça substancial requer, necessariamente, verdade factual. [3]


Tendo por ponto de partida a narrativa sempre parcial das partes, é por meio da produção de provas que, em última análise, se viabiliza a descoberta dos fatos. Cabe prioritariamente aos árbitros, com a colaboração das partes, a construção de um ambiente em que a atividade probatória possa se desenvolver com imparcialidade e eficiência.


No âmbito da arbitragem internacional, deve-se levar em consideração as importantes diferenças de cultura jurídica, tanto dos árbitros como das partes e de seus representantes. Indivíduos acostumados com um processo inquisitorial podem ser surpreendidos com uma moldura predominantemente adversarial dada à arbitragem; advogados para quem a preparação de testemunhas constitui violação ética em seu país de origem podem se escandalizar com a tolerância do tribunal arbitral à “preparação” de testemunhas pelo advogado da parte contrária, admitida noutras jurisdições.


É nesse contexto que se inserem as Regras da IBA para a Produção de Provas em Arbitragem Internacional (“Regras da IBA”). Embora tenham sido criadas “como um recurso para partes e árbitros gerarem um processo eficiente, econômico e justo para a produção de provas na arbitragem internacional”,[4] podem ser elas “particularmente úteis quando as partes se originarem de culturas jurídicas distintas”.[5]


Originariamente publicadas em 1999,[6] as Regras da IBA têm influenciado de maneira inquestionável a arbitragem internacional e até mesmo a arbitragem doméstica, sendo não raro aplicadas por iniciativa própria dos tribunais arbitrais ou por solicitação das partes. Dez anos após sua primeira atualização, ocorrida no ano de 2010, elas foram novamente atualizadas no ano de 2020 e publicadas em 17 de fevereiro de 2021. É desta última atualização que trataremos neste breve texto.


2. Resumo geral das mudanças


O foco central da revisão das Regras da IBA foi a adaptação da arbitragem internacional à nova realidade trazida pela pandemia da COVID-19. A produção de provas na arbitragem, em especial da prova oral, sempre envolveu essencialmente a reunião presencial de todos os envolvidos: árbitros, advogados, testemunhas, experts, secretários, estenógrafos etc. Embora não fosse incomum a oitiva de testemunhas por videoconferência, a ideia de uma audiência em que até mesmo nenhum dos participantes estivesse no mesmo ambiente soaria quase como uma ficção[7] antes da transformação trazida pela pandemia.


Essa brusca mudança de realidade aumentou também a preocupação já existente com a cibersegurança e a proteção de dados. Isto se deve não apenas à realização de audiências remotas, mas também em decorrência da paulatina substituição de uma logística de transmissão de cópias físicas de submissões e documentos – também dificultada pelas restrições sanitárias – pelo recurso exclusivo ao carregamento de documentos eletrônicos na “nuvem”.


Ao lado dessas mudanças mais prementes, o Grupo de Trabalho encarregado da revisão da Regras da IBA aproveitou também para fazer pequenos ajustes no texto de 2010. A seguir, trataremos das principais mudanças introduzidas nas regras, iniciando-se pela regulação das audiências remotas.


3. Audiências Remotas


As Regras da IBA passam a definir audiência remota como aquela conduzida, total ou parcialmente, com todos ou apenas alguns participantes, por meio de teleconferência, videoconferência ou outra tecnologia de comunicação pela qual pessoas em mais de uma localização participem simultaneamente. É fácil ver que, nessa definição, inserem-se também as chamadas audiências híbridas, em que, por exemplo, o tribunal esteja reunido com os representantes das partes em localidade diversa de onde se encontrem as testemunhas. Assim, uma audiência será considerada remota quando pelo menos um de seus participantes vier a participar, com o uso de alguma tecnologia de comunicação, a partir de localidade distinta daquela em que realizada a audiência.


A audiência remota é regulada no artigo 8.2. O tribunal arbitral pode determinar a realização da audiência remota tanto de ofício quanto a requerimento das partes. É certo, contudo, que deverá o tribunal ao menos ouvir as partes antes de decidir a respeito. A regra confere ao tribunal arbitral as ferramentas necessárias para evitar que uma das partes protele desnecessariamente a arbitragem com uma recusa injustificada ou irrazoável à realização da audiência remota, ao mesmo tempo em que reconhece que o procedimento arbitral se dá no interesse das partes.


Uma vez designada a audiência remota, o tribunal arbitral deverá consultar as partes para estabelecer um protocolo para a realização da audiência remota de maneira eficiente, justa e sem interrupções indesejadas. A regra não define quem se encarregará prioritariamente da elaboração desse protocolo, o que dá liberdade ao tribunal arbitral seja para propô-lo, seja para solicitar às partes sugestões ou mesmo uma proposta conjunta. Dentre os temas que o protocolo poderá endereçar, as regras mencionam a tecnologia a ser utilizada, a necessidade de testes ou treinamentos prévios à realização da audiência, o estabelecimento de horários de início e de fim da audiência (tendo em vista especialmente as diferenças de fuso horário para os participantes), a maneira de exibir os documentos para as testemunhas e para o tribunal arbitral e meios para garantir que as testemunhas não sejam indevidamente influenciadas ou distraídas. Quanto a este último ponto, o autor participou como coárbitro em audiência na qual foram especificadas em protocolo nada menos do que doze regras aplicáveis às testemunhas, dentre as quais: (i) a sala na qual a testemunha seria ouvida deveria conter apenas os equipamentos tecnológicos indispensáveis à oitiva, (ii.) a testemunha deveria demonstrar com a câmera que em sua mesa se encontravam apenas seu testemunho escrito (witness statement) e documentos anexos, (iii.) o áudio da testemunha deveria ficar aberto durante todo seu depoimento, (iv.) antes de iniciar seu depoimento, a testemunha deveria desconectar seu telefone celular e mostrar com a câmera o panorama de sua sala, provando estar sozinha. Outras medidas são sugeridas pelo Grupo de Trabalho da IBA nos comentários às alterações, como o uso de câmeras com lentes panorâmicas (fish-eye lenses), instalação de espelhos atrás das testemunhas ou mesmo a participação de representantes da parte contrária no local onde se encontre a testemunha (o que somente faria sentido na ausência de riscos sanitários).


Há inúmeros outros temas que podem ser objeto do protocolo de audiência remota, como por exemplo a necessidade de break-out rooms para as deliberações dos árbitros, a etiqueta e maneira de intervenção (uso das ferramentas dos aplicativos, como “levantar a mão”), procedimentos para gravação da audiência, medidas em caso de perda de conexão por algum dos participantes etc.


4. Consulta às Partes sobre Questões Envolvendo a Produção de Provas; Cibersegurança e Proteção de Dados


O artigo 2 das Regras da IBA trata da consulta do tribunal arbitral às partes sobre variadas questões envolvidas na produção de provas, como preparação de depoimentos escritos de testemunhas fáticas e técnicas, forma para sua oitiva, requerimentos para produção de documentos, dentre outras. Duas mudanças foram adotadas na revisão de 2020. Primeiramente, deixou-se claro que tais questões serão tratadas “quando aplicáveis”, na medida em que o artigo não tem por objetivo determinar à exaustão a maneira como a prova deva ser produzida na arbitragem, podendo determinados procedimentos ser dispensados pelas partes. A segunda mudança inclui questões de cibersegurança e proteção de dados como aquelas dentre as quais o tribunal arbitral poderá consultar as partes. Ao comentar tal alteração, o Grupo de Trabalho da IBA sugere a consulta a outros recursos, como o ICCA-IBA Roadmap to Data Protection in International Arbitration e o ICCA-NYC-Bar-CPR Protocol on Cybersecurity in International Arbitration.


5. Produção da Prova Documental


O artigo 3 das Regras da IBA regula a produção de prova documental. Em sua redação original, o dispositivo previa a possibilidade de uma das partes requerer a produção de documento em poder da parte contrária, bem como desta apresentar objeção a tal requerimento. Não havia, contudo, previsão expressa de resposta à objeção, mas tão somente de convite às partes para solucionar a divergência antes de uma delas requerer ao tribunal arbitral decisão a respeito. A revisão de 2020 passa a prever a possibilidade de resposta à objeção (3.5 e 3.6), porém não como um direito absoluto da parte, e sim como uma faculdade conferida ao tribunal arbitral. Desde que viabilizado o contraditório, passa-se a dispensar o tribunal da consulta às partes antes de decidir sobre a objeção (3.7), o que já vinha sendo a prática corrente em arbitragens internacionais, em especial com a utilização de ferramentas como a Redfern Schedule.


Passa-se a prever que a parte que atende ordem de produção de documentos não necessita traduzi-los para o idioma da arbitragem (3.12, d); cumpre à parte que requer a introdução de documento em idioma distinto traduzi-lo (3.12, e). A despeito da falta de previsão expressa, depreende-se que, havendo necessidade de se traduzir documento produzido em atendimento à ordem de produção, cumprirá à parte que requereu a produção arcar com os custos correspondentes.


6. Depoimentos Escritos e Laudos Técnicos (Witness Statements e Expert Reports)


Os artigos 4.6 e 5.3 das Regras de 2010 permitiam que novos depoimentos escritos de testemunhas fáticas ou laudos técnicos, assim como revisões ou aditamentos àqueles já introduzidos na arbitragem, fossem apresentados para endereçar questões contidas em depoimentos escritos, laudos técnicos ou submissões da parte contrária. Acrescenta-se agora como justificativa para a apresentação de novos depoimentos escritos ou laudos técnicos (assim como de aditamentos ou revisões) o surgimento de fatos novos que não pudessem ter sido abordados nos depoimentos ou laudos já juntados (4.6, b e 5.3, b).


7. Autoridade do Perito indicado pelo Tribunal Arbitral


O artigo 6.3 das Regras de 2010 continha dúbia disposição segundo a qual o perito indicado pelo tribunal arbitral teria a mesma autoridade do tribunal para requerer informações das partes. Como se sabe, o perito pode requerer informações às partes, porém tal faculdade não se confunde com o poder do tribunal arbitral de ordenar a produção de documentos. Ao retirar aquela disposição, a revisão das regras deixa claro que cabe somente ao tribunal arbitral decidir sobre eventuais objeções das partes a requerimentos de informação feitos pelo perito. Isso não impede o perito de extrair conclusões ou inferências técnicas da ausência de informações, as quais deverão ser sopesadas soberanamente pelo tribunal arbitral em sua valoração da prova técnica.


8. Exclusão parcial ou total da prova; provas ilícitas


O artigo 9.2 das Regras de 2010 já estabelecia ser dever do tribunal arbitral excluir prova documental, testemunhal ou técnica (incluindo inspeções) em determinadas hipóteses envolvendo falta de relevância ou materialidade, impedimento legal ou ético (privilege), dentre outras. Duas alterações foram introduzidas na revisão de 2020. Primeiro, esclarece-se que a exclusão pode ser total ou parcial (ex. partes de um depoimento podem ser excluídas por conterem informações privilegiadas, sem prejuízo da manutenção de outras). Segundo, passa-se a prever de forma expressa que o tribunal poderá, de ofício ou a requerimento da parte, excluir prova obtida de maneira ilícita. Aqui, contudo, o tratamento dado pelo Grupo de Trabalho da IBA foi distinto das hipóteses anteriores. Dado o tratamento diverso que diferentes jurisdições dão à prova ilícita, reconhece-se a faculdade do tribunal arbitral em excluí-la, mas não um dever propriamente dito. Evidentemente, a lei aplicável à arbitragem poderá elevar tal faculdade a dever, devendo tribunais arbitrais atentar para o risco de anulação de sentença arbitral calcada em prova ilícita.


9. Conclusões


As Regras da IBA são uma conquista da comunidade arbitral internacional, tendo sua raiz nas regras que lhes antecederam no início dos anos 80. Nessas quatro décadas de desenvolvimento sob os auspícios de uma instituição sólida como a International Bar Association, elas se tornaram familiares aos praticantes de arbitragem emtodo o mundo, proporcionando maior previsibilidade e segurança para uma atividade tão central à arbitragem como é a produção de provas. A pronta reação à mudança da realidade trazida pela pandemia da COVID-19 e o uso dessa oportunidade para o aperfeiçoamento das Regras da IBA é mais uma prova de sua solidez e confiabilidade.


 

[1] Sócio de Souto Correa Advogados. Advogado e Árbitro. Doutor em Direito (UFRGS). Mestre em Direito (PUCRS). Visiting Scholar (Queen Mary University). [2] Francisco Blavi & Gonzalo Vial, The Burden of Proof in International Commercial Arbitration: Are We Allowed to Adjust the Scales? 39 Hastings Int’l & Comp. L. Rev. 41 (2016). [3] No original: “substantial justice requires factual truth” Susan Haack, Of Truth, in Science and in Law, 73 Brooklyn Law Review 73, no. 3 (2008). P. 986. [4] Preâmbulo, Regras da IBA sobre Produção de Provas em Arbitragem Internacional. [5] Idem. [6] É importante recordar que, em 1999, as Regras da IBA substituíram as Regras Suplementares da IBA sobre a Apresentação e Recepção de Provas em Arbitragem Comercial Internacional, publicadas em 1983. [7] Não desconhecemos, é claro, as hipóteses de arbitragem on-line já existentes, especialmente em matéria de registros de domínio (vide https://www.wipo.int/amc/en/domains/).

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