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A arbitragem nos estados e municípios

Joaquim Falcão[1]

João Carlos Cochlar[2]


A reforma da lei de arbitragem de 2015[3] muito expandiu seu respectivo mercado profissional. Explicitamente permite que a administração pública direta e indireta resolva questões relativas a direitos patrimoniais disponíveis através da arbitragem. É ápice de quase 100 anos de história.


Desde 1922, quando por primeiro se regulamentaram contratações públicas e licitações no Brasil[4], até 1986, na ocasião em que se promulgou nova lei de regência[5], eram remotas as possibilidades de arbitragem na administração pública. A regulamentação de 1922[6], silente sobre tal viabilidade, dizia que os litígios só poderiam ser resolvidos pelo “foro nacional brasileiro”[7]. A doutrina era contra[8].


Nesse intervalo, o Supremo adotou posturas vanguardistas em relação à arbitragem. Um dos mais celebrados casos arbitrais brasileiros é o Caso Lage, cujo nome também homenageia um dos parques mais tradicionais do Rio de Janeiro.


O patrimônio das empresas de Henrique Lage havia sido incorporado à União para atender demandas da Segunda Guerra Mundial mediante indenização. Só que a posterior disputa sobre o valor dessa indenização, que deveria ser travada em juízo arbitral por força de cláusula compromissória, sofreu uma barreira: a alegação pela União da inconstitucionalidade do juízo arbitral[9].


Não vingou. O ministro Bilac Pinto, no paradigmático julgamento no Supremo, reconheceu:


“É certo que o negócio jurídico [a cláusula compromissória] pode exigir (e isso só pode ocorrer, aliás, em se tratando de causa em que seja parte a Fazenda Pública) uma autorização legislativa para a instituição do Juízo Arbitral, e, em tal caso, provindo da lei, como sucede na hipótese, a subtração do litígio às Justiças regulares.”[10].


Mas ainda havia muito em que se progredir.


Da promulgação do Decreto-Lei 2.300/86 até sua reforma em 1987, a arbitragem chegou a ser expressamente proibida para a Administração Pública[11].


A partir de 1987, quando a norma proibitiva foi alterada, até 2015, leis esparsas permitiram a arbitragem em alguns setores, como o de energia elétrica, transporte ferroviário, petróleo e demais hidrocarbonetos, por exemplo. A famosa Lei nº. 8.666/93 (atual lei de licitações), com os dias contados, também ficava em silêncio. A palavra “arbitragem” não consta do seu vocabulário.


Doutrina também não permitia arbitragem sem lei expressa. Reconhecia o então advogado Luís Roberto Barroso que “a doutrina continua a estar de acordo que a arbitragem não poderá ser estabelecida pela Administração sem fundamento legal, por imposição do princípio da legalidade”[12]. Como, até 2015, arbitragem era exceção e não regra, o que havia era uma presunção de inviabilidade da via arbitral para a administração pública.


Agora não mais.


A lei de arbitragem incorporou cláusula geral expressa de arbitrabilidade subjetiva em relação à administração pública direta e indireta nas matérias envolvendo direitos patrimoniais disponíveis[13]. Já está apta, como vem mais e mais demonstrando nas crescentes arbitragens em que se envolve, a resolver seus conflitos por esse mecanismo.


Evidente a crescente adesão à arbitragem não só na realidade, mas também nas leis. Ao observarmos a nova lei de licitações, em contraste com a silente Lei nº 8.666/93, vemos capítulo inteiro dedicado à viabilização de mecanismos alternativos de resolução de controvérsias. Sobretudo a arbitragem[14].


A arbitragem também se aprofunda na Federação. Hoje, todos os entes federados podem se utilizar da arbitragem para resolver mais celeremente os conflitos. São exatamente uma União, 26 estados, o Distrito Federal e 5.570 municípios. Mas a prática efetiva ainda não usufruiu da permissão legal. É preciso regulamentação.


Alguns estados já avançaram nesta regulamentação. Além de Rio de Janeiro[15], São Paulo[16], Espírito Santo[17] e Rio Grande do Sul[18], o mais recente exemplo é o estado de Goiás. O decreto estadual nº 9.929/2021, de agosto deste ano, admitiu a arbitragem para contratos públicos, mediante procedimento público.


Também já existem municípios, como São Paulo (SP)[19], Cajamar (SP)[20], Mariana (MG)[21] e Candeias do Jamari (RO)[22] que editaram diplomas regulamentadores da arbitragem municipal.


Mas daí se evidencia um obstáculo de natureza pragmática. Pouco (ou pouquíssimo) do total de nossos estados e municípios tem capacidade técnico-jurídica e administrativa para criar e expedir, por si mesmos, as respectivas regulamentações e procedimentos. Capacidade de treinar procuradores e advogados locais. Ou seja, fazer a lei acontecer.


Na verdade, uma lei que passa a vigorar – ou um acórdão do Supremo – não concretiza a etapa final do Estado Democrático de Direito na data de publicação. Ao contrário. É apenas o começo. A lei tem que entrar na vida. No cotidiano. Tem que ser eficaz.


Este é um problema relativo ao que chamamos de constitucionalismo de realidade.


O professor da FGV e presidente da CBMA Gustavo Schmidt escreveu sua dissertação de mestrado “Arbitragem na administração pública”, propondo exatamente um projeto de decreto regulamentador que pode ser adotado, como já começa a ser, por diversos entes federados[23].


Mas a lei não basta sem sua eficácia. Não finca raízes na realidade. O caminho a percorrer ainda é longo. Mas pode ser instantâneo. Falta ainda, por exemplo, programa de capacitação de prefeitos, procuradores e assessores, para que a lei saia do texto e entre na vida.


A característica básica da arbitragem, no fundo, é a desestatização não só da doutrina jurídica então prevalecente, mas a democratização da potencialmente eficaz resolução de conflitos. Entendida até então como monopólio do Poder Judiciário a resolução de conflitos[24].


Devem-se ao senador Marco Maciel os principais esforços para aprovação congressual da arbitragem até então entendida como que retirando do Judiciário a apreciação dos conflitos, um direito de acesso de todos os cidadãos[25].


Este muro da estatização monopolista foi rompido não somente com a lei, mas também com a jurisprudência que reconheceu a sentença arbitral como final, sem precisar ser reapreciada pelo Judiciário, e agora com a lei que permite o Estado como parte.


De resto, já são os indicadores de que a arbitragem faz crescer o mercado profissional: (a) o aumento do número de estudantes que querem se especializar em mecanismos alternativos de controvérsias; (b) os contratos e estatutos de grandes empresas incluindo, quase sempre, cláusulas compromissórias cheias, contendo sede e câmara arbitral; (c) a expansão de instituições arbitrais nacionais e internacionais, tal como o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).


A hora é agora.


 

[1] Membro da Academia Brasileira de Letras, professor de Direito Constitucional e conselheiro da Transparência Internacional Brasil. [2] Advogado, pesquisador acadêmico, vencedor do XI Prêmio Alfredo Lamy Filho da FGV Direito Rio. [3] Lei 13.129/15. [4] Código de Contabilidade da União de 1922 e diplomas regulamentadores. Cf. JUNQUEIRA, André Rodrigues. Arbitragem e administração pública. In: LEVY, Daniel; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (coord.). Curso de arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 579 [5] Decreto-Lei 2.300/86. [6] Decreto 15.783/22, que regulamentava o Código de Contabilidade da União. [7] Cf. SCHMIDT, Gustavo. Arbitragem na administração pública. Rio de Janeiro: Ed. Juruá, 2018, p. 24. [8] CAVALCANTI, Themistocles Brandão apud JUNQUEIRA, André Rodrigues. Op. cit. [9] Sobre o assunto, vale excerto do voto do ministro Bilac Pinto no AI 52.181: “De resto, a União conformou-se com a decisão, não interpondo quaisquer recursos, deu execução, em parte, às deliberações do Juízo Arbitral, com elas se conformando, e pediu até ao Congresso o crédito necessário para ultimar a execução da sentença. Só anos depois abjura o novo Governo ao compromisso solene e livremente pactuado. Isso levou o saudoso e preclaro Ministro Costa Manso, em carta dirigida ao Dr. Raul Gomes de Matos, a exclamar melancolicamente: ‘Infelizmente, porém, umas das partes - o Governo brasileiro - tomou a estranha deliberação de renegar o solene compromisso que assumira de dar execução ao Laudo Arbitral. E os Tribunais Judiciários certamente obrigarão o Governo a tomar o caminho que deve trilhar, respeitando a palavra empenhada’”. [10] STF. AI 52.181/GB. Rel. Min. Bilac Pinto. D.J. 14 nov. 1973. – voto do relator. [11] Art. 45. Parágrafo único do Decreto-Lei nº 2.300/86. Nos contratos com pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas no estrangeiro deverá constar, necessariamente, cláusula que declare competente o foro do Distrito Federal para dirimir qualquer questão contratual, vedada a instituição de juízo arbitral. (grifou-se) [12] BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional, tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 620. [13] Art. 1º, §1º, da Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96). [14] CAPÍTULO XII – DOS MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem. Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações. Art. 152. A arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade. Art. 153. Os contratos poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de resolução de controvérsias. Art. 154. O processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes. [15] Decreto Estadual nº 46.245/18 – Estado do Rio de Janeiro [16] Decreto Estadual nº. 64.356/19 – Estado de São Paulo [17] Lei Estadual nº 10.885/18 – Estado do Espírito Santo [18] Decreto Estadual nº. 55.551/20 – Estado do Rio Grande do Sul [19] Decreto Municipal nº. 59.963/20 – Município de São Paulo (SP) [20] Decreto Municipal nº. 6.132/19 – Município de Cajamar (SP) [21] Decreto Municipal nº. 9.813/19 – Município de Mariana (MG) [22] Lei Municipal nº. 999/19 – Município de Candeias do Jamari (RO) [23] Acesse a íntegra da Proposta de Decreto em: https://drive.google.com/file/d/1mWVPvFpQoT3r4EqsCLfqxVhWzFV3LHwr/view?usp=sharing. Extraído de: SCHMIDT, Gustavo. Arbitragem na administração pública. Rio de Janeiro: Ed. Juruá, 2018, pp. 127-131 [24] Sobre o tema, cf. FALCÃO, Joaquim. Quem é o dono da justiça no Brasil? . Valor Econômico. 06 ago. 2021. [25] V., por exemplo, o debate sobre a constitucionalidade da lei de arbitragem, que teve votos vencidos nesse sentido. Cf. STF. SEC 5.206 (AgRg.). Rel. Min. Sepúlveda Pertence. D.J. 12.12.2001.

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