top of page

Quebra judicial indiscriminada do sigilo na arbitragem: análise da jurisprudência recente do TJ/SP

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa[1]


A 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP proferiu uma decisão totalmente absurda no tocante ao sigilo na arbitragem, fulminando-o de nulidade, para tanto tendo adotado argumentos completamente despropositados[2]. Um dos pontos principais da decisão foi no sentido de haver considerado inconstitucional o art. 189, IV do CPC. A conclusão dos julgadores pela inconstitucionalidade desse inciso está fundada nos artigos 5º, LX; e 93, IX da Constituição Federal.


Nesse sentido, quando uma parte procura o Judiciário na busca da anulação de uma sentença arbitral, derrubar o sigilo presente na arbitragem na ausência de pedido justificado implica em julgar ultra petita, considerando-se a natureza da arbitragem e que, para a sua sobrevivência no mundo do direito, seus princípios devem ser mantidos. A participação do Judiciário quando chamado para os fins acima é limitada aos termos da Lei de Arbitragem, não sendo compatível com a sua atuação a chamada ao CPC.


Verifica-se que os julgadores simplesmente jogaram por terra a Lei de Arbitragem, cuja constitucionalidade foi expressamente reconhecida pelo STF em famosa decisão - SE 5.206-Espanha (AgRg), rel. Min. Sepúlveda Pertence, 12.12.2001.(SE-5206) e cujo art. 2º, parágrafo 3° dispõe que o princípio da publicidade é obrigatório para os feitos que envolvam a administração pública, entendendo-se que, no silêncio, as partes podem optar pelo sigilo, como resultado de uma simples e tradicional forma de interpretação de normas jurídicas.


Ora, quando se trata da solução de pendências relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, o interessado tem dois caminhos, o tradicional do Judiciário, e o da arbitragem. Eles, como microssistemas jurídicos, operam em regime de universos que se tangenciam em um ponto comum, que é constituído pela CF. No tocante à arbitragem essa intersecção é marcada pelo princípio da autonomia privada, insculpido precisamente no mesmo art. 5º, inciso III, citado no acórdão sob referência, que se sobrepõe ao inciso LX, respeitante à publicidade dos atos processuais. No caso o inciso III prevalece, quanto à arbitragem, como forma de se dar eficácia ao princípio da liberdade das convenções no âmbito privado. Assim sendo a construção feita na decisão em apreço, trazendo para aquele instituto normas de direito processual “judicial”, misturou coisas inconciliáveis.


O acórdão aqui criticado foi objeto de decisão tomada na plena vigência da Lei de Liberdade Econômica (13864/2019), totalmente ignorada. E seu artigo primeiro enuncia expressamente a proteção à livre iniciativa, ao livre exercício da atividade econômica e dispõe sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, aplicando-se ao exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente. Nesse plano na sequência do mesmo dispositivo, deve ser interpretado o direito em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade, todas normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas.


No presente caso não houve respeito ao contrato celebrado entre as partes.


Mais ainda, o art. 2º da LLE é taxativa em estabelecer que são princípios que norteiam o disposto nesta Lei: a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; e a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas. Como se pode perceber, passar por cima da cláusula de sigilo consiste em afronta a esse princípio de liberdade.


Nota-se que uma vertente do Judiciário parece entender que o seu papel é o de protetor geral dos cidadãos que geralmente são considerados hipossuficientes, relativa ou absolutamente incapazes de cuidar dos seus próprios interesses. E essa proteção deve cobrir um interesse difuso, que foi representado no caso pela alusão à necessidade da proteção de um interesse social indeterminado, correspondente a titulares abstratos e impessoais. Nesse sentido, haveria uma comunidade indefinida de jurisdicionados, ávidos por informações relacionadas à vida das empresas e aos seus infortúnios, representados, entre outros, pela condenação em um processo arbitral. Agiriam como comadres à procura de fofocas jurídicas com que passar o tempo.


Ficou acrescida nesse cenário a inclusão de outros empresários, externos aos feitos, cujos interesses eventuais possam ser protegidos, seguindo a decisão em apreço, pelo conhecimento do resultado de arbitragens, mas, muito mais do que isso, dos fundamentos que foram adotados na sentença arbitral, a qual formaria uma jurisprudência a ser consolidada pela via de precedentes arbitrais.


Lá pelas tantas a decisão de que se trata faz uma alusão gratuita às companhias abertas, o que não era o caso de qualquer das partes desse julgamento, pois se trata de sociedades limitadas. No campo do mercado de capitais há uma justificativa perfeitamente coerente com a transparência, pois se trata de cuidar dos interesses dos acionistas minoritários e dos investidores, que são chamados publicamente a aplicarem os seus recursos naquelas. Em sociedades limitadas isso não existe. São sócios que para tanto se aproximam pela via do parentesco ou de outras relações inerentes a uma proximidade, como a de amigos.


Mais ainda, um chamamento à proteção contra a assimetria de informações, que seria alcançada por meio da quebra do sigilo é mais um caso de quebra de parâmetros, considerada a origem da expressão, muitas vezes tomada de orelhada. Como se sabe, ela foi cunhada a partir de precioso texto de George Akerlof, denominado “The Market for Lemons: Quality Uncertanty and the Market Mechanism”[3]. “Lemons” era o apelido dado a carros usados de má qualidade, vendidos no mercado próprio. Por sua vez, “peach” era a designação de carros de alta qualidade.


Foi outro absurdo trazer essa questão para uma arbitragem cuja sentença é limitada exclusivamente às partes, não podendo atingir interesses de terceiros, muito menos prejudicá-los.


Já diziam os portugueses, muito sábios na vida dos negócios que, no campo do comércio, “quem não tem competência não se estabeleça”. Isso significa que se um alguém passa a atuar em determinado mercado, que ele se prepare para ser eficiente e isso não implica em que contrate um advogado par buscar na jurisprudência orientações sobre todo e qualquer risco que ele possa correr, o que seria absolutamente inviável. E outro efeito da LLE (art. 3º, inciso VIII) foi, precisamente, o de considerar que na sua atuação os empresários agem sob o pressuposto da paridade, o que implica em se encontrarem no mesmo nível de informação sobre os negócios entre eles realizados, do que decorre a presunção juris tantum de não estar reconhecida a assimetria informacional in abstrato.


Muito bonita a citação do juiz Louis Brandeis da Suprema Corte Americana, no sentido do benefício da publicidade (a luz do sol) quanto às pendências judiciais. Bonita, mas completamente deslocada[4].


O contexto da afirmação de Brandeis se deu no plano de considerações sobre a concentração do sistema financeiro norte-americano daquele tempo e seu relacionamento com a negociação de valores mobiliários no mercado. Veja-se que ainda não havia se consolidado no ordenamento jurídico dos Estados Unidos da América todo o aparato legislativo que veio a ser criado, tanto quanto ao direito concorrencial, quanto ao do mercado de capitais. Mas então o pano de fundo era completamente diferente ao de uma pendência arbitral privada, nada tendo a ver com a necessária publicidade concernente à negociação com valores mobiliários, em relação à qual a publicidade e a transparência têm valor quase absoluto. Não se pode livremente transpor uma afirmação feita em determinada situação específica para torná-la um postulado jurídico supra normativo, considerando-se que, no nosso caso, temos parâmetros constitucionais específicos. Brandeis, requiescat in pace.


Por sua vez, o combate ao art. 189, IV do CPC, taxado de inconstitucional, não se aplicaria à intimidade e ao interesse social, alegadamente generalizados, e de matriz constitucional desatendida.


Intimidade é um tema não apropriado à arbitragem, convenhamos. Ela diz respeito a direitos pessoais e não àqueles vinculados ao exercício de uma atividade empresarial. Foi completamente descabida a referência e esse direito.


Quanto ao interesse social, da mesma forma. E esse termo social, agregado a outros (propriedade, empresa, contratos) tem sido utilizado muito além da sua apreensão por institutos jurídicos, tendo se tornado quase sinônimo de socialista, no sentido de que tudo é público e nada mais é privado. Se é assim, adeus à autonomia privada, que siga para outras plagas.


O ataque pela decisão vertente ao art. 189, IV do CPC o critica porque ele possibilitaria que as orientações do Poder Judiciário fossem conhecidas apenas por poucos advogados e poucos julgadores, sendo desconhecidas pelo jurisdicionado. Ora, a situação imaginada pelos ilustres julgadores no tocante ao conhecimento de decisões do Judiciário, que quebraria a assimetria informacional, levaria os jurisdicionados à leitura diária dos Diários da Justiça ou de repertórios de jurisprudência (dezenas e dezenas deles), acarretando o mesmo efeito das publicações presentes de maneira geral nos Diários Oficiais, como o caso da famosa Conceição: “ninguém sabe, ninguém viu”. Esse argumento, forçoso é dizer, revela-se ridículo.


Qual o interesse social presente numa pendência entre duas empresas que estão litigando pela via arbitral? O interesse primordial é do controlador, dos administradores e dos sócios. Um banco procurado por uma das partes para o fim da obtenção de um empréstimo precisará tomar conhecimento dos efeitos patrimoniais negativos de uma sentença adversa, o que fará por meio de uma due diligence especialmente voltada para a contabilidade do interessado.


E, em contrapartida, o chamado segredo de negócio é princípio secular da atividade mercantil, não sendo dado a terceiros o direito de saber o que anda ocorrendo dentro das empresas, pois esse conhecimento daria margem a vantagens a serem auferidas pelos concorrentes, sem qualquer custo, a não ser o de consultarem os processos correndo no Judiciário.


Segue-se uma referência à pacificação social, que seria ferida pelo sigilo nas arbitragens. Parece que existiria um clamor na sociedade civil no sentido da superação desse obstáculo – que eu desconheço em absoluto, para que a paz seja restabelecida ou não prejudicada. Vamos e venhamos, essa alegação é “forçar demais a barra”. Nada tem a ver com a arbitragem.


Essa dita paz social estaria assegurada pela segurança e previsibilidade geradas a partir de decisões reiteradas do Poder Judiciário – que seriam aplicáveis às decisões arbitrais – pela consolidação de precedentes, do que resultaria a formação de uma jurisprudência sobre os temas discutidos naquela seara.


Desde que passei a atuar no campo da arbitragem, seja como árbitro, seja como consultor, jamais vi um caso igual ou minimamente semelhante a outro. Daí que seria impossível se criar uma jurisprudência a partir dos fundamentos utilizados nas respectivas sentenças arbitrais.


Dessa maneira, é completamente descabida a busca de uma coerência em decisões arbitrais, porque cada caso é um caso. A propósito, a comprovação da opção pelo sigilo é feita diretamente pela leitura da clausula compromissória e/ou pelo Termo de Arbitragem ou Ata de Missão.


Reforce-se a natureza privada da arbitragem. No legítimo uso do princípio constitucional de que são titulares, os contratantes elegem o sigilo como regra a ser adotada. Se agiram de boa fé e, consequentemente sem fraude, o Judiciário não tem o poder de invadir a sua esfera privada de interesses, a não ser que, precisamente, aqueles pressupostos não estejam presentes.

E já que o sigilo corre o risco de não mais ser um dos apanágios da arbitragem (com o desaparecimento de um dos seus incentivos principais), por qual razão recorrer a ela e não ao Judiciário onde uma das vantagens será o direito a mais de um grau de jurisdição?


Em conclusão essa decisão é reprovada em todos os seus aspectos, com deslouvor, esperando-se que seja desprovida em grau superior para que a arbitragem sobreviva entre nós.


 

[1] Sócio de Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Fundador e Coordenador Geral do GIDE – Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial. Esse texto tem por base artigo publicado em Migalhas em 19.03.2021. [2] Cf. AgI nº 2263639-76.2020.8.26.0000, j. 02.03.2021, rel. Cesar Ciampolini. [3] Vide https://www.ft.com/content/fddde450-2521-11e8-b27e-cc62a39d57a0 [4] In “Others People Money”, cap. V, What Publicity can do”, texto encontrado em “Louis D. Brandeis School of Law Library/’, texto datado de 20.12.1913, acesso em 17.03.2021.

421 visualizações0 comentário

Comments


Nunca perca um post. Assine agora!
bottom of page