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Jurisdição do árbitro, sentença arbitral e multas processuais: algumas reflexões

Matheus S. Caetano[1]


Enquanto o processo de conhecimento encerra crises de certeza, o processo de execução encerra "crises de cooperação". Na fase executiva, a atuação da norma concreta inserida em um título executivo judicial se dá pela realização de atos processuais de império estatal sobre a realidade, com ou sem a colaboração do devedor que não adimpliu com a obrigação representada em sentença[2].

No tratamento das sentenças que condenem ao pagamento de quantia certa ou quantia a ser fixada em liquidação, prescreve o art. 523, § 1º do CPC/15 (equivalente ao art. 475-J do CPC/73) a incidência de uma multa de 10% sobre o valor da condenação, caso o devedor não efetue, espontaneamente, o pagamento ao credor num prazo de 15 dias, a contar da intimação do devedor.

A sentença arbitral produz os mesmos efeitos das sentenças proferidas pelo Poder Judiciário, configurando, inclusive, título executivo judicial se condenatória (art. 515, inciso VII, CPC/15 e art. 31, Lei de Arbitragem). Contudo, diferentemente do Poder Judiciário, a jurisdição do árbitro se encerra por ocasião da prolação da sentença (art. 29, Lei de Arbitragem), não gozando o árbitro de imperium ou coertio para fazer valer sentença de natureza condenatória, mandamental ou executiva latu senso[3].

Por esse motivo, duas questões se punham como controversas, ainda sob a vigência do CPC/73.

A primeira controvérsia pairava sobre a possibilidade de o rito para cumprimento definitivo de sentença cível que reconhece a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa ser também aplicável ao cumprimento de sentenças arbitrais com preceito condenatório.

Sobre este primeiro ponto, duas eram as posições. Uma minoritária entendia que o regime de cumprimento de sentença inaplicar-se-ia às sentenças arbitrais, tendo em vista a diversidade de ritos entre o procedimento judicial e o procedimento arbitral[4]. A prevalecente reputava ser aplicável, no cumprimento de sentença arbitral, o mesmo regime jurídico da sentença judicial[5]. Esta segunda posição se amparou no art. 31 da Lei de Arbitragem, que atribuiu à sentença arbitral status de título executivo judicial[6].

Por consequência, não restam dúvidas acerca da aplicação da multa referida no art. 523, §1° do CPC/15, vez que integrante do rito próprio do cumprimento de sentença. O Superior Tribunal de Justiça[7], a esse propósito, fixou em matéria de arbitragem a seguinte tese:

"No âmbito do cumprimento de sentença arbitral condenatória de prestação pecuniária, a multa de 10% (dez por cento) do artigo 475-J do CPC deverá incidir se o executado não proceder ao pagamento espontâneo no prazo de 15 (quinze) dias contados da juntada do mandado de citação devidamente cumprido aos autos (em caso de título executivo contendo quantia líquida) ou da intimação do devedor, na pessoa de seu advogado, mediante publicação na imprensa oficial (em havendo prévia liquidação da obrigação certificada pelo juízo arbitral)".

Já a segunda controvérsia reside na possibilidade de o árbitro fixar, em sentença arbitral que condene ao pagamento de quantia certa, multas (astreintes) ou outras medidas coercitivas para além daquela prevista no art. 523, §1° do CPC/15. De plano, entender-se-ia que não, haja vista que tais medidas estariam incluídas num poder de império não titularizado por ele[8].

No entanto, percebe-se uma tendência à compreensão de que o árbitro, apesar de não gozar de poderes de império, pode emitir preceito mandamental a respeito das medidas coercitivas. É dizer: há a possibilidade de o árbitro, em sentença, estabelecer astreintes para exercer coerção sobre o devedor.

A esse entendimento, Francisco José Cahali[9] observa que o árbitro, nos limites de sua jurisdição, pode impor multa ao vencido em virtude de seu inadimplemento ante ao comando inscrito na sentença (integrante da condenação, facultativa e excepcional), sem prejuízo da multa imposta pelo art. 523 do CPC/15 (não integrante da condenação, obrigatória e exigível ex officio pelo juiz).

Numa mesma perspectiva, Fernanda de Gouvêa Leão[10] compreende que o árbitro tem poderes de execução indireta, não obstante não possa praticar atos que inflijam alterações no mundo sensível. A concreção de tais atos compete ao juízo estatal, que, em caso de inadimplemento, adotará ou não os atos executórios a propósito do cumprimento da obrigação e do pagamento da multa diária fixada[11].

Nos tribunais brasileiros, encontram-se decisões que reconhecem a impossibilidade de o juízo do cumprimento afastar a multa ou rever seu valor, tendo em vista a excepcionalidade da intervenção do Poder Judiciário no que restou decidido pelos árbitros[12].

Em sentido diverso, há julgados que consideram, conforme o caso, ser possível ao juízo do cumprimento reduzir o valor da multa fixada pelo árbitro com base em critérios como a exorbitância do valor da multa, a vedação ao enriquecimento sem causa, a necessidade de adequação da multa fixada ao valor da condenação ou a superveniência de cumprimento parcial da obrigação por parte do devedor[13].

Notadamente, a discussão vem sendo guiada à luz do princípio do poder geral de efetivação, na compreensão de que o juízo (nesse caso, o árbitro) pode determinar, em caráter mandamental, medidas executivas atípicas para conferir efetividade às suas decisões[14].

Dessa forma, o que se nota é que: (i) o cumprimento de sentenças arbitrais se subsume ao mesmo procedimento do cumprimento de sentenças cíveis, dado que ambas são títulos executivos judiciais com processo de cognição que as antecedeu; (ii) o árbitro pode, em sentença arbitral, fixar multa coercitiva para além daquela prevista no art. 523, §1° do CPC/15, multa essa que, em caso de inadimplemento, tomará concreção por meio do exercício da força do Estado-juiz. A modulação de seu quantum pelo juízo do cumprimento depende de uma análise feita in concreto.

A efetiva e saudável cooperação entre o Poder Judiciário e os árbitros é, nesse cenário, oportuna e imprescindível.


 

[1] Diretor Acadêmico do Comitê de Jovens Arbitralistas (CJA/CBMA). Graduando em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). [2] ABELHA, Marcelo. Manual de Execução Civil. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 3. [3] GUERRERO, Luis Fernando. Cumprimento da Sentença Arbitral e a Lei 11.232/2005. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 15, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 102-116; e VALENÇA FILHO, Clávio de M., Poder Judiciário e Sentença Arbitral. Curitiba: Juruá, 2002, p. 46 e seguintes. [4] Sobre a posição minoritária, vide o seguinte julgado: TJRJ. AgIn n. 0011634-13.2008.8.19.0000, relatoria da Des. Leticia de Faria Sardas, julgado em 16.06.2008. In casu, a relatora entendeu que a execução de sentença arbitral gozava de rito distinto do rito de cumprimento de sentença cível judicial, afastando, inclusive, a incidência da multa pelo descumprimento voluntário da sentença (à época regulado pelo art. 475-J, CPC/73). [5] Sobre a posição prevalecente anterior ao CPC/15, vide os seguintes julgados: TJSP. AgIn n. 2015088-59.2014.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, julgado em: 05.05.2014, maioria; TJSP. AgIn n. 2041638-28.2013.8.26.000, Relator Des. Teixeira Leite, julgado em: 05.12.2013; TJSP. AgIn n. 0135158-76.2013.8.26.0000, 1ª Câmara de Direito Privado, Relatora Des. Christine Santini, julgado em: 17.09.2013; TJGO. AgIn n. 117975-95.2015.8.09.0000, 2ª Câmara Cível, julgado em: 17.11.2015, unânime; TJGO, AP n. 150770-74.2010.8.09.0051, 6ª Câmara Cível, julgado em 26.03.2013, unânime. [6] Tal posição prevaleceu mesmo após o advento do CPC/15. Vide os seguintes julgados: TJRJ. AgIn n. 0039871-42.2017.8.19.000, 12ª Câmara Cível, julgado em 17.10.2017, unânime; TJSC. AgIn n. 0031864-57.2016.8.24.0000, 1ª Câmara Cível, julgado em: 17.11.2016, unânime. [7] Sobre a aplicabilidade da multa referida no art. 523, §1° do CPC/15 ao cumprimento de sentenças arbitrais, vide os seguintes julgados: Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.102.460/RJ. Relator Min. Marco Buzzi. Julgado em: 17.06.2015; Superior Tribunal de Justiça. AgInt em AREsp n. 794.488/MT. Relator Min. Marco Buzzi. Julgado em 19.04.2018. Em tribunal de segundo grau, vide o seguinte julgado: TJPR. AgIn n. 0018440-96.2018.8.16.0000, 12ª Câmara Cível, julgado em 18.07.2018, unânime. [8] Sobre o entendimento de que o árbitro não poderia estabelecer qualquer ato executivo, vide o seguinte julgado: TJMG. AgIn n. 1.0000.18.062880-2/001, 18ª Câmara Cível, julgado em 04.12.2018. No corpo da decisão: "Sendo necessária a intervenção judicial para a sua execução forçada das sentenças arbitrais, bastante questionável se mostra, por ora, a possibilidade do referido Tribunal Arbitral impor multa a uma das partes, justamente pela natureza coercitiva que esta possui." [9] CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem: mediação, conciliação, tribunal multiportas. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 379-381. [10] LEÃO, Fernanda de Gouvêa. Arbitragem e Execução. 2014. 140f. Dissertação (Mestrado em Direito) ‒ Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 51. No mesmo sentido: PUCCI, Adriana Noemi. Juiz & árbitro. In: PUCCI, Adriana Noemi (Coord.). Aspectos Atuais da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 3-16. [11] Luis Fernando Guerrero e Vera Cecília Monteiro de Barros, em pesquisa realizada a respeito de arbitragem e execução, concluíram que "Apesar de uma minoria de decisões entendendo que isso [fixação de multas coercitivas pelo árbitro] não seria possível pelo fato de o árbitro não possuir poderes de coerção, a maior parte dos julgados entende que ao árbitro também é permitido determinar essas providências, que, conforme o caso, são ou não aplicadas pelo juiz togado." Cf. GUERRERO, Luis Fernando. BARROS, Vera Cecília Monteiro de Barros. 2ª Fase da Pesquisa “Arbitragem e Poder Judiciário”: Relatório do 4º Tema “Execução e Cumprimento da Sentença Arbitral”. Parceria institucional acadêmico-científica, Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e Comitê Brasileiro de Arbitragem. p. 38. [12] Sobre a impossibilidade de o juízo do cumprimento excluir ou rever a multa fixada pelo árbitro, vide os seguintes julgados: TJSP. AP n. 1005942-03.2018.8.26.0604, 33ª Câmara de Direito Privado, julgado em: 15.10.2020; TJSP. AgIn n. 2138395-11.2018.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, julgado em: 26.02.2019. No corpo da decisão do último julgado: “Indeferiu o pedido de limitação da multa diária, consignando que o juízo não poderia reapreciar a astreinte fixada pelo juízo arbitral, seja para alterá-la ou excluí-la, sob pena de macular a base sobre a qual o sistema arbitral é construído, qual seja, a não intervenção do Judiciário." [13] Sobre a possibilidade de o juízo do cumprimento reduzir ou agravar a multa fixada pelo árbitro, vide o seguinte julgado: TJRJ. AgIn n. 00019091920168190000. Relatora: Des. Maria Regina Fonseca Nova Alves, julgado em: 03.05.2016; TJSP. AgIn n. 2247976-63.2015.8.26.0000, 2ª Câmara de Direito Privado, julgado em 09.08.2016. No corpo da decisão do último julgado: "É cediço que a possibilidade de intervenção judicial no processo arbitral ocorre de maneira bastante restrita, conforme as hipóteses taxativas a que se refere o art. 33 da Lei de Arbitragem. O fato é que a Lei n. 9.307/96 concedeu jurisdicionalidade à arbitragem, conferindo a ela “os mesmos efeitos da sentença proferida pelo órgão do Poder Judiciário” (art. 31 da Lei n. 9.307/96). (...). Embora não se deva olvidar da desídia por parte da agravante no cumprimento da ordem do juízo arbitral e judicial para a satisfação da obrigação de fazer e o pagamento do fixado em razão do descumprimento, não se pode permitir enriquecimento da parte adversa." [14] ABELHA, Marcelo. Op. cit., p. 61. O autor faz referência à amplitude dos meios executivos, remetendo ao art. 139, inciso IV, do CPC/15.

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