top of page

Interpretação Constitucional do artigo 189, caput e inciso IV do CPC

Peter Christian SESTER[1]

Antes de mais nada, gostaria de abaixar um pouco a temperatura da discussão a respeito da decisão do TJSP sobre a inconstitucionalidade do artigo 189, caput e inciso IV do CPC[2]. Não concordo com essa decisão, mas também acho que a reação de parte da comunidade arbitral está exagerada. Portanto, gostaria de começar com duas metáforas alemãs. Deveríamos deixar a igreja na vila ou não precisamos transformar um mosquito num elefante![3]


No mundo dos negócios, não há nada mais irrelevante do que informações antigas. Um plano de negócio ou um EBITDA de 4-5 anos atrás não tem relevância nenhuma para as partes e seus concorrentes. Até um contrato com cláusula arbitral chegar ao Judiciário, em sede de ação anulatória, contra uma sentença arbitral, passam-se normalmente vários anos! Mesmo em casos excepcionais, como no caso Eldorado, passaram-se quatro anos entre a celebração do contrato e o pedido de anulação no Judiciário paulistano.


Dito isto, gostaria de deixar claro que a decisão do TJSP não afeta negativamente a competitividade de São Paulo como sede de arbitragem. Porque, simplesmente, não existe nenhuma jurisdição relevante que trate as sentenças anulatórias de forma confidencial (e.g., USA, UK, Suíça, França, Áustria ou Alemanha). Até na Suíça, famosa por ser super arbitration friendly, as sentenças anulatórias são públicas, apenas anonimizadas, ao proteger a identificação das partes, seus respectivos patronos e os árbitros. Portanto, uma reação que ouvi de um advogado falando “nunca mais vou colocar São Paulo como sede de arbitragem”, é um ‘Nirwana-approach’ (leva a lugar nenhum).


Pois bem, vamos agora analisar o conflito de interesse. Quais são os argumentos a favor da posição do TJSP, e como podemos, eventualmente, relativizá-los? O ponto de partida do TJSP é a regra constitucional da publicidade das sentenças do Judiciário (artigo 93, inciso IX da CRFB). Vale lembrar que o mesmo artigo estabelece a garantia constitucional da fundamentação. Não há dúvida de que a garantia constitucional do devido processo se aplica a ambas as jurisdições, ao juízo arbitral e ao juízo estatal. Tendo em vista que essa importante garantia constitucional do Estado Democrático de Direito distingue os modernos processos participativos dos velhos processos inquisitórios, é natural que o Judiciário sinta um certo desconforto com o artigo 189, caput e inciso IV do CPC. Para o bem ou para o mal, a nossa Magna Carta reconhece o controle constitucional difuso.


Quando uma norma infraconstitucional provoca dúvidas a respeito da sua constitucionalidade, existem duas possibilidades: (i) considerar a norma inconstitucional e desconsiderar o seu conteúdo; ou (ii) interpretar a norma restritivamente, a fim de compatibilizar o comando constitucional com os objetivos da norma infraconstitucional. A última abordagem tem a grande vantagem de preservar a harmonia entre os poderes, Judiciário e Legislativo. A interpretação constitucional é a abordagem preferida do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht), que raramente declara a inconstitucionalidade de uma norma do Legislativo, especialmente quando se trata de uma norma que entrou em vigor depois da Lei Fundamental (Grundgesetz). A meu ver, é perfeitamente possível interpretar o artigo 189, inciso IV do CPC constitucionalmente.


A chave para salvar a constitucionalidade é o objetivo da ação anulatória. Lendo os sete incisos do artigo 32 da Lei de Arbitragem, fica bem claro que a ação anulatória é principalmente uma garantia da ordem pública processual! Vale lembrar que o STF, no seu julgamento sobre a constitucionalidade da Lei de Arbitragem, citou como argumento central a existência da ação anulatória, como garantia do acesso ao Judiciário que, claro, é reduzido por causa do compromisso arbitral[4]. A função desta ação é a de garantir a ordem pública e o desenvolvimento do direito. Cada sentença do Judiciário tem essa função adicional, que aparentemente depende da sua publicidade. O direito da arbitragem não pode se desenvolver sem que os operadores do direito conheçam a posição do Judiciário a respeito. Todavia, isto não exige que os autos do processo anulatório e do respectivo procedimento arbitral precisem ser públicos, na íntegra. O texto do artigo 189, caput do CPC usa a palavra ‘processo’ e não sentença. Claro, dá para entender que processo inclui a sentença, mas tal entendimento não é mandatório. Portanto, a redação do artigo permite uma interpretação restritiva que salva a sua constitucionalidade.


Na nossa opinião, apenas a sentença anulatória deveria ser, em regra, pública, a não ser que uma parte interessada alegue e comprove interesses que justifiquem a exceção. Por exemplo, um contrato de acionistas de uma empresa familiar contém informações íntimas daquela família. Vale lembrar que informações que eram sensíveis no momento da celebração do instrumento serão, muitas vezes, cinco ou dez anos depois completamente irrelevantes. E, portanto, não podem justificar uma exceção da publicidade da sentença anulatória. Na nossa visão, a solução suíça é a melhor: publicidade da sentença arbitral, mas de forma anonimizada. Todavia, temos de reconhecer que a maioria das jurisdições relevantes na arbitragem internacional publicam as anulatórias sem anonimizar.


 

[1] SESTER, Peter Christian, doutor em direito (Dr. iur.) da Universidade Heidelberg (Alemanha); livre docente da Philipps-Universidade Marburg (Alemanha), doutor em macroeconomia (Dr. rer. pol.) da Universidade Humboldt (Berlim), Professor Convidado da FGV-Rio Direito, Professor Visitante da Universidade Nova de Lisboa, autor e coordenador do livro: International Arbitration: Law and Practice (Oxford Universty Press, 2020). [2] TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento n°2263639-76.2020.8.26.0000, Relator Cesar Ciampolini. [3] Wir sollten die Kirche im Dorf lassen und aus einer Mücke keinen Elefanten machen! [4] STF, Tribunal Ag. Reg. na SE n° 5.206-7, rel. Ministro Marco Aurélio, julgado em 12.12.2001, p. 967

389 visualizações0 comentário
bottom of page