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Confidencialidade x Transparência: propostas para o Judiciário Brasileiro

Joanna Trotta[1]


É cediço que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem proferido diversas decisões indeferindo o pedido de segredo justiça em processos relacionados à arbitragem, seja sob o fundamento de inconstitucionalidade do art. 189, IV do Código de Processo Civil, seja sob a ótica de uma interpretação restritiva do mesmo dispositivo.


Em 30/06/2021, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial negou provimento ao recurso de apelação da Vale S.A. contra a B3 S.A. – Bolsa Brasil, Balcão e outros, inadmitindo o segredo de justiça. O acórdão – em um processo com diversos contratos sigilosos – teve como fundamento o interesse público do jurisdicionado no conhecimento das matérias para todos os que têm interesse. Veja-se:


“De mais a mais, ao contrário, é de toda a conveniência, é de real interesse público, dar-se publicidade às relevantes questões que se discutem na presente demanda.

Como escrevi na monocrática mencionada no relatório, o segredo que normalmente se impõe às arbitragens é pernicioso à transparência e à própria higidez do Mercado de Capitais; mais ainda é obstáculo ao prestígio do Direito Comercial. A luz do sol deve brilhar sobre esses procedimentos relevantes, várias vezes decididos por árbitros qualificados, especialistas, professores, neles atuando advogados renomados. A cultura jurídica, a Academia, têm interesse em conhecer o que neles se passa. Há que difundir os precedentes das arbitragens nas comunidades econômica e jurídica, divulgando-se sua jurisprudência de modo acessível a todos os interessados[2]. (grifamos)


Na contramão a esse movimento, a 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal Bandeirante proferiu acórdão[3], em 29.07.2021, reformando decisão de 1º grau, para atribuir segredo de justiça aos autos do processo. Em sua fundamentação, a 24ª Câmara entendeu que:


a lei, em nenhum momento, exige prova da necessidade de defesa da intimidade, cabendo ao juiz avaliar esse critério "necessidade x interesse público”. Além disso, menciona que “[a] par do evidente sigilo que envolve os contratos nos quais embasada a ação, verifica-se a existência de diversos documentos nos autos principais (fls. 300/305, a exemplo) com menção de quantias em razão de aumento de capital, valores investidos, etc.


Parece que há um conflito entre a finalidade da regra nesses julgados do TJSP. Por um lado, o Tribunal objetiva uma maior transparência sobre os temas e/ou decisões sobre arbitragem, para que se possam criar precedentes sobre os temas e capacitar os magistrados sobre esses novos desenvolvimentos. De outro, não teria sido levada em consideração nas últimas decisões proferidas a – mais que previsível – fuga do Judiciário em casos de tutelas cautelares de urgência e pré-arbitrais para a esfera arbitral, sendo esta coberta pela confidencialidade contratada. Às partes é conferido o direito de optarem pelo árbitro de emergência para solicitar medidas de urgência antes da constituição do Tribunal Arbitral, afastando-se, por definitivo, a interação com o Judiciário prevista no art. 22 da Lei nº 9.307/96. Não seria forçado argumentar que, em determinadas situações, as partes optariam por preservar a confidencialidade contratada por elas, a fim de se preservar, também, a confidencialidade dos seus contratos e negócios[4].


A publicidade dos atos processuais é a regra geral[5]. Existem duas exceções a essa regra: a defesa da intimidade e o interesse social. No presente caso, estamos falando sobre a exceção da regra geral pois, na minha visão, e de acordo com o posicionamento de vários processualistas[6], o art. 189, IV, do Código de Processo Civil é a legislação infraconstitucional que concretiza as autorizações constitucionalmente permitidas. Para Fredie Didier Jr., por exemplo, “o art. 189 do CPC é regra que dá densidade normativa ao princípio da publicidade”[7].


Não se pode deixar de mencionar que a confidencialidade nos negócios é crucial e deve ser preservada. A intimidade, que se estende para o âmbito dos negócios, é inviolável de acordo com o art. 5º, X, da Constituição Federal. No entanto, há que se argumentar que, em alguns casos específicos, como o da arbitragem com a Administração Pública, há um interesse público inerente e, portanto, não se pode restringir, em qualquer hipótese, o princípio da publicidade. De tal forma que a Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96) estabelece, em seu art. 2º, §3º, que “[a] arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.”


Não obstante o dispositivo supracitado, a Lei de Arbitragem é silente sobre os demais casos relacionados à confidencialidade. Poderia o silêncio servir como autorização para as partes optarem pela confidencialidade? Afinal, a confidencialidade é uma das características mais atrativas da arbitragem. A liberdade é um direito constitucionalmente previsto, porém, não é absoluto.


É preciso atentar que o Brasil mudou. A arbitragem no Brasil cresceu e agora pode se manter sozinha, podendo andar com suas próprias pernas. Agora, ela não só anda, mas corre – e muito. Por isso, um instituto tão grande e próspero do nosso sistema legal poderia ser (mais) transparente. Manter o status quo é tampar os olhos dos jurisdicionados e do judiciário em relação ao que é realmente decidido nesse microssistema da arbitragem[8]. Está na hora de uma mudança em prol da coletividade e, também, para o bem do próprio instituto da arbitragem.


No entanto, não podemos nos apegar a extremos: ou segredo de justiça integral ou publicidade integral. Com extremos, temos excessos. Temos que criar um sistema a fim de se criar sinergias, ou teremos uma eterna luta entre a arbitragem e o Judiciário.


Após analisar a constitucionalidade do art. 189, IV, do Código de Processo Civil, e potenciais reformas[9], venho propor ao Judiciário Brasileiro 3 (três) soluções para mitigar os problemas advindos da tensão entre transparência e confidencialidade no mundo arbitral, para que não seja necessário retirar o segredo de justiça de todos os processos que se encaixam no inciso IV do art. 189 do CPC:


1. Em primeiro lugar, a publicação obrigatória de sentenças judiciais no DJE sobre processos relacionados à arbitragem sem que haja a identificação das partes;


2. Em segundo lugar, a publicação de sentenças relacionadas à arbitragem devem ser publicada após o período de esclarecimentos nos processos arbitrais[10], ou seja, quando houver coisa julgada material; e


3. Em terceiro lugar, manter em total sigilo quando o processo trata de ação anulatória de sentença parcial, pois, o excesso da publicidade pode causar danos imensuráveis à intimidade dos negócios e ao procedimento arbitral que ainda estiver em atividade; e os árbitros não devem ter novos obstáculos para inferir negativamente no seu livre convencimento e dever de imparcialidade.


O princípio da publicidade dos atos processuais tem como objetivo proteger direitos fundamentais e garantir o controle da administração do Poder Judiciário, de tal forma que o conhecimento das decisões judiciais é necessário para efetuar esse controle. A consolidação de uma jurisprudência, especialmente por tribunais com grande expertise técnica sobre casos de extrema relevância comercial, é fundamental para a própria eficiência do sistema[11]. Como apontam os doutrinadores Julian David Metthew Lew e Loukas A. Mistelis, a publicação de sentenças arbitrais pode ser fundamental para a criação de precedentes e como fonte do desenvolvimento da arbitragem no meio acadêmico[12]. Além de ser fonte do direito, ela permite que futuras decisões sejam proferidas com uma melhor qualidade, pois, ambos os árbitros e juízes, teriam um incentivo maior a proferir sentenças bem fundamentadas e convincentes.


Existe, portanto, um melhor de dois mundos? Podemos preservar a confidencialidade dos negócios e ao mesmo tempo garantir a finalidade do princípio da publicidade dos atos processuais?


Recentemente, a Câmara Internacional de Comércio anunciou uma parceria com a start-up Jus Mundi para disponibilizar ao público acesso a todas as sentenças publicáveis e documentos relacionados, proferidos a partir de 1º de janeiro de 2019[13]. De acordo com o ex-presidente da Corte da CCI, Alexis Mourre, essa nova política irá aumentar a transparência e a qualidade das arbitragens da CCI como, também, contribuirá para a legitimidade do instituto da arbitragem de modo geral[14].


No âmbito nacional, a questão foi levantada pela Comissão de Valores Mobiliários, que submeteu à audiência pública proposta de alteração na Instrução CVM nº 480, de 7 de dezembro de 2009, para criação de um novo comunicado sobre demandas societárias[15]. Conforme exposto pelo Edital de Audiência Pública SDM nº 01/21, a agência reguladora vê a necessidade de alteração do regramento atual conferido ao dever de informar no que tange a arbitragens societárias[16].


Diante de diversas iniciativas, nacionais e internacionais, que atacam o problema, deve ser analisado se o levantamento do segredo de justiça é a (melhor) solução para gerar mais transparência e para a criação de uma jurisprudência arbitral.


Como dizia Thomas de Maizire, “[c]onfientiality and transparency are not mutually exclusive, but rather two sides of the same coin” (grifos nossos). Devemos pensar em diferentes soluções para que seja possível atingir a finalidade pleiteada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e, ao mesmo tempo, preservar a intimidade dos negócios e o direito à confidencialidade livremente contratada nas arbitragens.


 

[1] Bacharelanda pela FGV Direito Rio; Co-Editora Chefe Discente do FGV Blog de Arbitragem. [2] TJSP; Apelação Cível 1031861-80.2020.8.26.0100; Relator: Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 30/06/2021; Data de Registro: 01/07/2021. [3] TJSP; Agravo de Instrumento 2083979-88.2021.8.26.0000; Relator: Salles Vieira; Órgão Julgador: 24ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 29/07/2021; Data de Registro: 31/07/2021. [4] Conforme a pesquisa “Arbitragem no Brasil” realizada pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem (Cbar) em conjunto com o Instituto Ipsos em 2021, 75% dos entrevistados afirmaram que autorizariam a publicação das sentenças proferidas nos processos em que atuam, com os nomes das partes e dos árbitros, se fossem suprimidas informações confidenciais das sentenças. Em relação aos demais 25% dos entrevistados, a principal razão para não autorizar a publicação das sentenças foi a “confidencialidade/sigilo” (53%). Resultados da pesquisa disponíveis em: https://cbar.org.br/site/wp-content/uploads/2021/09/pesquisa-cbar-ipsos-2021-arbitragem-no-brasil.pdf [5] A Constituição Federal de 1988 estabelece a regra geral de publicidade dos atos processuais em seus arts. 5º, LX, e 93, IX: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem; Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. [6] FITCHER, José Antonio. MONTEIRO, André Luis. A confidencialidade na reforma de Lei de Arbitragem. ROCHA, Caio Cesar Vieira; SALOMÃO, Luis Felipe (coord.) Arbitragem e mediação: a reforma da legislação brasileira. 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Atlas, 2017. Ver também: NELSON NERY JR. e GEORGES ABBOUD, Direito Constitucional Brasileiro: Curso Completo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 235/236: “Assim, esses dispositivos regimentais não foram recepcionados pela nova ordem constitucional, ao contrário do CPC 189, que, acolhendo o princípio da publicidade, excetua de sua incidência os atos que digam respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos, guarda de menores, nas demais causas em que o exigir o interesse público, outras hipóteses que estejam protegidas pelo direito constitucional à intimidade bem como os casos que versam sobre arbitragem. O CPC 189, portanto, estabeleceu a regra da publicidade e as exceções nele contidas estão em perfeita consonância com o comando constitucional emergente da CF 5.º LX”. [7] DIDIER JR. Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento, v. 1, 21 e.d., Salvador: Jus Podivm, 2019, p. 116. [8] De acordo com pesquisa “Arbitragem no Brasil” realizada pelo Comitê Brasileiro de Arbitragem (Cbar) em conjunto com o Instituto Ipsos em 2021, apenas 4% dos juízes “sabem muito sobre arbitragem”. Em relação aos advogados responsáveis por processos de arbitragem e árbitros, esse número sobe para 44% e 63%, respectivamente. Resultados da pesquisa disponíveis em: https://cbar.org.br/site/wp-content/uploads/2021/09/pesquisa-cbar-ipsos-2021-arbitragem-no-brasil.pdf [9] Trabalho com publicação prevista para janeiro/2022. [10] Cf. Art. 30, parágrafo único, Lei nº 9.307/96. [11] No famoso caso “Dow Chemical”, o Tribunal Arbitral entendeu que “The decisions of these tribunals [ICC arbitral tribunals] progressively create caselaw which should be taken into account, because it draws conclusions from economic reality and conforms to the needs of international commerce, to which rules specific to international arbitration, themselves successively elaborated, should respond.” ICC Partial Award 4131, September 1982, in S. Jarvin and Y. Derains (eds), Collection ICC Arbitral Awards (1990), p. 151. [12] Julian David Mathew Lew, Loukas A. Mistelis, et al., Comparative International Commercial Arbitration. Kluwer Law International., 2003, p. 627 – 662. “However, publication of awards generally serves important purposes: published arbitration awards may be used as precedents and contribute directly or indirectly to the development of arbitration, may inspire confidence in the arbitration process and most certainly assists scholars and practitioners to study the topic by being a practical and influential source of information. [13] Comunicado CCI: https://iccwbo.org/media-wall/news-speeches/icc-and-jus-mundi-launch-partnership-to-publish-icc-arbitral-awards/ [14] “The publication of ICC awards on an opt-out basis through a trusted partner is an important development in the ICC Court’s policy to enhance transparency in ICC Arbitration. The increased availability of awards will contribute to improve the quality of ICC Arbitration as much as to strengthen the legitimacy of arbitration in general.” https://iccwbo.org/media-wall/news-speeches/icc-and-jus-mundi-launch-partnership-to-publish-icc-arbitral-awards/ [15] http://conteudo.cvm.gov.br/audiencias_publicas/ap_sdm/2021/sdm0121.html [16] “Após mais de dois anos do lançamento do projeto dedicado a estudar o regime de proteção dos investidores minoritários no mercado de valores mobiliários brasileiro, a CVM acredita que os deveres de comunicação hoje existentes não são suficientes para dar aos investidores das companhias abertas visibilidade adequada acerca de demandas envolvendo a companhia investida e que, muitas vezes, envolvem discussões acerca de questões que podem, direta ou indiretamente, envolver direitos caros aos acionistas. A CVM não ignora que as demandas societárias – termo, que, conforme previsto na Minuta, compreende todo processo judicial ou arbitral relativo à matéria prevista na legislação societária e de mercado de capitais ou nas normas editadas pela Comissão de Valores Mobiliários – _que envolvem direta ou indiretamente companhias abertas compõem um grupo bastante heterogêneo, havendo casos em que não se justifica a ampla divulgação do litígio por exigência do regulador. Assim, a Minuta propõe que o novo dever de divulgação se limite às demandas societárias em que o emissor, seus acionistas controladores ou seus administradores figurem como partes e: (i) que envolvam direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos; ou (ii) nas quais possa ser proferida decisão cujos efeitos possam atingir a esfera jurídica do emissor ou de outros titulares de valores mobiliários de emissão do emissor que não sejam partes do processo.”

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