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Arbitragem de investimentos e o Direito à água: casos de concessão dos serviços de água na Argentina


Mariana Novotny Muniz[1] e Rodrigo Bellotti Azevedo[2]




Desde a década de 1980, pode-se observar uma tendência mundial de integração e liberalização econômica que se concretizou, dentre outras maneiras, na remoção de barreiras a investimentos estrangeiros e na sua proteção por meio de tratados de investimentos. Atualmente, a proteção de investimentos estrangeiros por meio de tratados é vista como um sucesso no Direito Internacional, tendo como objetivo principal a proteção dos direitos de propriedade dos investidores estrangeiros perante os Estados. Diversos países da América Latina, especialmente a Argentina, optaram por privatizar setores da infraestrutura e concedê-los a investidores estrangeiros.


Assim, investidores privados estrangeiros se envolveram em atividades com grande impacto nas obrigações de direitos humanos detidas pelos Estados, como serviços relacionados à distribuição de água. A Argentina não antecipou a possibilidade de tratados de investimento e contratos de concessão com investidores estrangeiros limitarem suas medidas regulatórias no caso de ameaça a direitos humanos.


A crise que sobreveio à Argentina nos anos 2000 fez com que surgissem litígios decorrentes da concessão dos serviços de distribuição de água em diversas províncias do país. As concessões tinham como base tratados bilaterais de investimento, que determinavam que disputas relacionadas deveriam ser levadas ao CIRDI (ICSID). Acontece que parte dos litígios que se sucederam envolviam importantes questões relacionadas a direitos humanos, visto que os desacordos entre o poder concedente e as concessionárias quanto aos regimes tarifários tinham efeito no acesso à água, previsto por documentos internacionais pertencentes ao sistema internacional e regional de direitos humanos aos quais a Argentina se encontra sujeita[3].


A partir da análise das arbitragens de investimento decorrentes das concessões dos serviços de distribuição de água realizadas pela Argentina, o presente post tem como objetivo: (i) investigar se e como os tribunais arbitrais podem invocar argumentos relacionados a direitos humanos para aliviar obrigações dos Estados decorrentes dos tratados de investimento e quais as dificuldades relacionadas; (ii) como tais argumentos foram tratados pelos tribunais de investimentos constituídos; e, por fim, (iii) propor soluções para o possível conflito entre direitos decorrentes de tratados de investimento e obrigações internacionais de direitos humanos.


Os Tribunais Arbitrais podem levar em conta direitos humanos ao decidir disputas de investimento?


A jurisdição dos tribunais arbitrais constituídos sob o CIRDI se restringe aos limites estabelecidos pelo tratado de investimento em questão. Assim, para que seja possível a discussão sobre direitos humanos e, eventualmente, a responsabilização por violação destes, eles precisam se encontrar expressos no tratado[4]. Entretanto, na prática, a regra é a ausência de provisões relacionadas a direitos humanos nos tratados de investimento[5].


Diante deste cenário, diversos autores propuseram soluções para mediar a tensão entre direitos humanos e a proteção de investimentos. Foram sugeridas formas de permitir que tribunais de investimentos lidem com questões relacionadas a direitos humanos. Ressaltam-se duas dessas sugestões, sendo elas: (i) a inclusão de normas de direito internacional por meio da escolha das normas aplicáveis à arbitragem; e (ii) a invocação indireta por meio da interpretação dos tratados[6].


Embora a utilização de argumentos relacionados a direitos humanos por via indireta possa ser vista como um avanço dentro do sistema internacional de investimentos, são diversos os problemas daí decorrentes. Visto que o cabimento de argumentos relacionados a direitos humanos se encontra em uma margem de discricionariedade, as partes não sabem - de antemão - se (i) o tribunal levará em consideração argumentos de direitos humanos; (ii) se levarem, em que medida tais argumentos poderão aliviar as medidas regulatórias tomadas pelo país recebendo o investimento.

Além disso, os métodos também geram um problema para a própria dinâmica do sistema de investimentos, visto que - tratando-se de uma abordagem ex post - geram insegurança tanto para o Estado receptor do investimento, quanto para o investidor estrangeiro[7]. Por um lado, tal insegurança pode ferir as legítimas expectativas do investidor, que deveria ter levado em conta os custos associados a uma eventual política regulatória mais "rígida" na hora de sua proposta. Como consequência, poderia haver - inclusive - uma redução no fluxo de investimentos estrangeiros em geral. De outro lado, os elevados custos associados ao procedimento arbitral levam a um "chill regulatório" pelo Estado. A fim de evitar conflitos futuros, os Estados limitam as medidas relacionadas a direitos humanos, o que põe em risco a implementação de direitos tais a que o país se encontra vinculado.


A reação dos tribunais diante da apresentação de argumentos de direitos humanos pela Argentina


Até hoje, foram submetidas 9 disputas ao CIRDI relacionadas aos sistemas de distribuição de água na Argentina[8]. Os casos envolvem disputas sobre política tarifária e seus efeitos na acessibilidade da água. Existe um padrão entre os diversos casos: o congelamento das tarifas dos serviços levava as concessionárias a instaurarem procedimentos arbitrais alegando o descumprimento de diversas cláusulas dos tratados de investimento, como a vedação à desapropriação indireta e o requerimento de tratamento justo e equitativo aos investidores.


A Argentina, nos mais diversos casos, arguiu não poder ser responsabilizada pelas medidas administrativas tomadas, pois estas teriam como objetivo assegurar o cumprimento do direito à água. Afinal, a Argentina se encontra sujeita a diversos documentos dos sistemas mundiais e regionais de direitos humanos que preveem tal direito. No Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, tal direito é previsto expressamente pelo Comentário Geral 15 da ONU. Embora não tenha efeito vinculante, o Comentário estabelece obrigações aos Estados signatários em relação ao direito à água[9]. Quanto a documentos com força vinculante, encontram-se a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção sobre os Direitos das Crianças.


Cabe agora a pergunta: os tribunais arbitrais constituídos consideram-se competentes para analisar os argumentos de direitos humanos apresentados? Em caso afirmativo, em que medida tais argumentos impactam a sua decisão? Primeiramente, destaca-se que os tribunais constituídos para resolver os conflitos acima descritos não rejeitaram, em quaisquer dos casos, sua competência para analisar argumentos relacionados a obrigações internacionais de direitos humanos. Todavia, parecem existir três padrões diferentes quanto ao posicionamento dos tribunais frente a tais argumentos.


O primeiro padrão pode ser observado no caso Azurix v. Argentina, no qual o tribunal se julgou competente para analisar argumentos de direitos humanos, mas - ainda assim - rejeitou os argumentos apresentados pela Argentina. A controvérsia quanto às normas aplicáveis foi abordada pelo tribunal, que decidiu que tanto o ordenamento jurídico argentino, como direito internacional seriam aplicáveis[10]. Como consequência, argumentos relacionados a direitos humanos apresentados pela Argentina poderiam ser aplicados. No entanto, o tribunal constituído rejeitou os argumentos apresentados pela requerida, afirmando que ela não teria apresentado alegações suficientes de que havia uma incompatibilidade entre as obrigações de direitos humanos e os standards do tratado existente[11].


O segundo padrão pode ser visto nos casos Suez v. Argentina e Saur v. Argentina, nos quais os tribunais aceitaram os argumentos abordados pela Argentina, mas os argumentos não foram utilizados para aliviar as obrigações da Argentina sob os tratados de investimento. Segundo a decisão do caso Suez v. Argentina, aquele País seria obrigado a respeitar tanto as normas sob o tratado bilateral com a Espanha, como suas obrigações internacionais de direitos humanos, de modo que ambas não fossem "mutuamente exclusivas". No caso Saur v. Argentina, não obstante a aceitação dos argumentos levantados pela Argentina, o tribunal decidiu que as obrigações internacionais sob o sistema de direitos humanos eram compatíveis com as obrigações decorrentes do tratado de investimento e o País teria tomado medidas administrativas incompatíveis com a imparcialidade requerida pelo tratado.


O terceiro padrão, por fim, pode ser observado no caso mais recente Urbaser v. Argentina, no qual o tribunal não só levou em conta os argumentos levantados pela Argentina, mas estabeleceu que as obrigações internacionais de direitos humanos poderiam aliviar certas disposições do tratado de investimento em questão. De forma mais detalhada, o tribunal decidiu que o congelamento tarifário imposto não poderia constituir uma violação do tratado bilateral com a Espanha, visto que o objetivo visado pela Argentina era garantir a acessibilidade da água em um contexto de crise financeira. O tribunal foi além e defendeu a tese de que a água, por ser um direito humano básico e universal, deveria estar dentro das legítimas expectativas do investidor. Em outras palavras, a concessionária não poderia esperar que a Argentina permitiria que a água se tornasse inacessível devido a altas tarifas.


Uma solução ex ante para a definição de direitos humanos


Sem dúvida, o caso Urbaser v. Argentina é simbólico, visto que o tribunal constituído não somente aceitou os argumentos apresentados pela Argentina relacionados às obrigações de direitos humanos, mas também os utilizou para aliviar algumas de suas obrigações sob o tratado de investimento discutido. O problema na aplicação de direitos humanos nos casos de arbitragem de investimento contra a Argentina não parece residir na discussão acerca da jurisdição do tribunal, mas sim na discricionariedade dos tribunais ao decidirem se tais direitos podem ou não ser utilizados para aliviarem obrigações sob um tratado de investimento. Conforme já explicado, a insegurança gerada pela discricionariedade leva a dificuldades na implementação de direitos humanos, visto que - de um lado - viola as legítimas expectativas do investidor e - por outro lado - leva a um "chill regulatório" do Estado.


Assim, uma solução para o problema acima descrito passa necessariamente por uma diminuição do escopo de discricionariedade dos tribunais arbitrais ao julgarem disputas que tenham impacto na garantia de direitos humanos. Para tal, deve haver uma determinação ex ante de quais normas (e.g. quais tratados de direitos humanos específicos) devem ser aplicadas em um litígio e, ainda, em que medida tais normas podem influenciar nas obrigações do país recebendo o investimento sob o tratado.


Uma forma de implementação da solução, já prevista em alguns tratados bilaterais de investimento recentes, seria de o país receptor do investimento e o investidor estrangeiro conduzirem uma "auditoria de direitos humanos" antes da celebração do contrato[12]. Essa auditoria consiste em uma análise de quais tratados de direitos humanos o Estado em questão está sujeito, quais normas constitucionais e infraconstitucionais protegem os direitos específicos e quais medidas administrativas e regulatórias elas autorizam para proteção de tais direitos. Tal auditoria seria utilizada no surgimento de conflitos para definir o escopo de normas aplicáveis e, ainda, definiria o escopo das legítimas expectativas do investidor ao celebrar o contrato. Assim, somente medidas estatais que extrapolam tal escopo poderiam ser consideradas como violadoras do tratado.


Tal auditoria resolveria grande parte dos problemas narrados, visto que os tribunais saberiam de antemão quais normas aplicar e, além disso, quais medidas regulatórias específicas de fato constituiriam violações dos tratados. Isso seria uma garantia de que os tribunais não deixariam de lado violações de direitos humanos por violarem a legítima expectativa dos investidores e, ainda, evitaria as consequências da insegurança, como uma eventual redução no fluxo de investimentos estrangeiros e um "chill regulatório" do Estado no que diz respeito à implementação de direitos humanos.



 

[1] Graduanda em Direito pela FGV Direito Rio. [2] Graduando em Direito pela FGV Direito Rio. [3] KRIEBAUM, U. The Right to Water Before Investment Tribunals, Brill Open Law, v. 1, p. 17, 2018. [4] SIMMA, B. Foreign Investment Arbitration: A Place for Human Rights?, International & Comparative Law Quarterly, v. 60, n. 3, p. 582, 2011. [5] MARC, J. International Investment Agreements and Human Rights, INEF Research Paper Series on Human Rights, Corporate Responsibility and Sustainable Development, Duisburg, p. 26. [6] Trata-se da utilização de fontes do direito internacional, em particular princípios e jurisprudência de direitos humanos, na interpretação das disposições dos tratados - que são, por via de regra, vagas. Segundo SIMMA (2011), a legitimidade dessa opção pode se dar de duas formas diferentes. A primeira delas é a presunção de que os tratados não acontecem no vácuo, de modo que as partes não poderiam ter dispensado as normas do Direito Internacional Público na sua elaboração. A segunda forma seria através da regra geral de interpretação disposta no Artigo 31(3)(c) da Convenção de Viena, segundo a qual "serão levados em consideração, juntamente com o contexto: c) quaisquer regras pertinentes de Direito Internacional aplicáveis às relações entre as partes." [7] SIMMA, B. Foreign Investment Arbitration: A Place for Human Rights?, International & Comparative Law Quarterly, v. 60, n. 3, p. 579-580, 2011. [8] Os casos relacionados a concessões de serviços de água na Argentina que foram levados ao CIRDI foram: Urbaser v. Argentina (ICSID Case No. ARB/07/26), Aguas Cordobesas v. Argentina (ICSID Case No. ARB/03/18), Vivendi v. Argentina (I) (ICSID Case No. ARB/97/3), Impregilo v. Argentina (I) (ICSID Case No. ARB/07/17), SAUR v. Argentina (ICSID Case No. ARB/04/4), Azurix v. Argentina (II) (ICSID Case No. ARB/03/30), Suez and Vivendi v. Argentina (II) (ICSID Case No. ARB/03/19), Suez and Interagua v. Argentina (ICSID Case No. ARB/03/17), Azurix v. Argentina (I) (ICSID Case No. ARB/01/12). [9] O Direito Humano à Água e ao Saneamento. Disponível em: <https://www.un.org/waterforlifedecade/pdf/human_right_to_water_and_sanitation_milestones_por.pdf>. Acesso em 13 mai. 2020. [10] ICSID, Azurix v. Argentina (I) (ICSID Case No. ARB/01/12), 2003. Disponível em: <https://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0061.pdf>. Acesso em 13 mai. 2020. [11] ICSID, Azurix v. Argentina (I) (ICSID Case No. ARB/01/12), 2003. Disponível em: <https://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0061.pdf>. Acesso em 13 mai. 2020. [12] SIMMA, B. Foreign Investment Arbitration: A Place for Human Rights?, International & Comparative Law Quarterly, v. 60, 2011, p. 594.

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