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A ‘guerrilha’ no procedimento arbitral: O dever de revelação do árbitro

Atualizado: 16 de mar. de 2022

Cláudio Finkelstein[1]


Há muito que a adoção de táticas de guerrilha[2] se tornou um dos principais problemas na condução de procedimentos arbitrais, sejam esses domésticos ou internacionais. A implementação deliberada de mecanismos que [ainda que lícitos] de forma antiética visam a obstruir, atrasar, desviar atenções ou mesmo sabotar os procedimentos com a introdução de dúvidas e eventuais "nulidades de algibeira[3]" deve a qualquer custo ser ferrenhamente combatida tanto pelos tribunais arbitrais, quanto pelas instituições responsáveis pela condução dos mesmos e pelos juízos encarregados da execução ou anulação da sentença arbitral.


Diz-se também as instituições porque, na fase pré-arbitral, a Kompetenz é atipicamente exercida por estas, normalmente limitada a um poder de verificação prima-facie de existência, eficácia, validade, escopo e amplitude da convenção de arbitragem, mas temos presenciado ocasiões em que tal limitação, superficial em tese, é por vezes extrapolada pelas instituições, com consequências potencialmente lesivas à arbitragem propriamente dita, aquela conduzida pelos árbitros, principalmente quando tais decisões tornam-se finais, impossíveis de serem revistas pelos árbitros ou retardando o início de um procedimento.


Muitas vezes, na fase “administrativa” se adiantam discussões que, quando extrapolam a competência prima-facie, deveriam ser reservadas à fase arbitral, até porque em raras ocasiões tal antecipação de discussão pode ser vantajosa à parte atacada, vez que antecipá-las pode ensejar oportunidade para esta sanar eventuais vícios. Ainda assim, tais indesejáveis discussões têm o condão de atrasar em demasia o início do julgamento.


De qualquer modo, o objetivo destas poucas linhas é analisar especificamente a necessidade de o árbitro indicado [pelas partes, por seus pares ou pela instituição] prestar esclarecimentos aos litigantes e seus representantes legais, visando a assegurar às partes que a confiança nele depositada é justificada, especificamente no tocante à sua capacidade técnica, assim como em sua independência e imparcialidade.


No final de 2020, ganhou destaque no meio arbitral caso de anulação de sentença arbitral por violação ao dever de revelação, previsto no art. 14 da Lei de Arbitragem. A decisão[4], proferida pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendeu em apertada síntese que a não revelação de atuação do árbitro em outro procedimento arbitral, relativo a uma relação jurídica similar, por indicação de uma das partes do procedimento, caracterizaria quebra de confiança da outra parte, que apenas tomou ciência de tal fato após a prolação da sentença. Nesse sentido, ficou consignado que a suspeição pode ser avaliada pelo seu caráter subjetivo, na medida em que uma violação vem a afastar a confiança da parte impugnante, prevista no art. 13 da Lei de Arbitragem.


Tal decisão representa uma mudança no entendimento que vinha sendo adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que antes seguia a teoria da prova de parcialidade[5], de modo que, em sede de anulação de sentença, seria necessária prova concreta de parcialidade ou dependência. Com isso, como em uma movimentação de objeto e sua respectiva sombra, a mudança no standard de anulação de sentença modificou também o standard de dever de revelação do árbitro, visto que o primeiro, até por razões de direito aplicado, é hierarquicamente superior ao segundo. Isto é, mesmo que eventual fato omitido não interfira na dependência ou falta de parcialidade do árbitro, pela lógica do Tribunal a falha em revelar tal fato pode implicar na anulação da sentença arbitral.


A pergunta que não quer calar, afinal, é: no que consiste o dever de revelação do árbitro? Quanta informação é suficiente? Trata-se de tipo aberto, que nem a lei nem os vários regulamentos institucionais ou mesmo a ética da arbitragem trata de forma exaustiva, visto que a lei em seu Art. 14, § 1º, faz referência a “qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”. O mesmo artigo, em seu caput, traz como critério adicional as hipóteses de impedimento e suspeição dos juízes, previstas nos arts. 144 e 145 do Código de Processo Civil.


Ao utilizar o termo “justificada”, o legislador parece estabelecer parâmetro de verificação objetivo, que acaba dependendo de uma avaliação externa, para se verificar se tais fatos são graves o suficiente para gerar dúvidas, afastando a presunção inicial de imparcialidade e independência, assegurando às partes a razão em confiar neste para a condução e deslinde do procedimento.


Na busca por critérios objetivos, os partícipes podem levar em consideração os poucos julgados disponíveis, as regras editadas por instituições arbitrais, seus códigos de ética (quando presentes) ou até, em busca de parâmetros conhecidos, as Regras de Arbitragem do Chartered Institute of Arbitrators (CIArb) de 2015 e as diretrizes da International Bar Association (IBA) para conflitos de interesses em arbitragens internacionais. Estas, contudo, podem não ser condizentes com a realidade arbitral brasileira, que pressupõe diversas peculiaridades da nossa prática, cultura e disponibilidade de profissionais. Dessa maneira, muitas vezes os padrões internacionais se mostram excessivamente rígidos, de maneira que não podem ser replicados na nossa realidade.


No fim do dia, ainda que se faça crítica ao direito aplicado [vez que nem sempre o que os tribunais decidem é o certo], o melhor termômetro para o assunto acaba sendo a jurisprudência, vez que para ser efetiva a sentença arbitral tem que ser exequível. Nesse sentido, a London Court of International Arbitration (LCIA) merece destaque, ao disponibilizar as decisões de impugnação a árbitros das arbitragens administradas por ela.


No Brasil, sabe-se que o Centro de Estudos e Pesquisa em Arbitragem da Universidade de São Paulo (CEPArb-USP), assim como a ABJ (Associação Brasileira de Jurimetria) em conjunto com o Observatório de Arbitragem da PUCSP vem promovendo estudos sobre casos de impugnações de grandes instituições arbitrais brasileiras. Trata-se de movimento não apenas útil para fins de correta consolidação dos standards nacionais da arbitragem, mas também essencial para a promoção de maior segurança jurídica na arbitragem, até para que o judiciário conheça tais standards.


Para se evitarem os riscos de substituição do árbitro durante o procedimento ou anulação de sentença arbitral, é natural que o dever de revelação seja igual ou mais amplo do que os standards de impugnação. Nesta seara, é fundamental diferenciar no que consiste o dever de revelação dos árbitros e compará-lo ao standard necessário para afastamento do profissional. Enquanto o primeiro requer que o árbitro revele aqueles fatos em que, na sua percepção, poderiam suscitar dúvidas relevantes quanto à sua independência ou imparcialidade, o segundo consiste em situação suficientemente grave para gerar às partes presunção de parcialidade ou dependência, afastando-se, assim, a confiança destas prevista no art. 13 da Lei de Arbitragem.


Na tentativa de se resguardarem dos riscos relativos a potenciais impugnações (ainda que frívolas), muitos profissionais optam por revelar toda e qualquer informação, praticando o chamado overdisclosure. Tal prática deve ser vista com cautela, de modo a não elevar as expectativas de revelação de maneira ineficiente ou gerar uma abundância de informações desnecessárias. Afinal, objetivamente, só são alvo de dever de revelação aquelas informações que, aos olhos das partes (ou, idealmente, de terceiro neutro no lugar das partes), pudesse ensejar dúvida justificada acerca de sua imparcialidade e independência.


Esse aspecto é deveras relevante, pois no momento em que o Judiciário toma como seus tais critérios, não necessariamente adotando os critérios da comunidade arbitral, que retira seus poderes não do estrito texto da lei, mas sim das limitações impostas pelas partes e seus desejos no momento da negociação da avença, tal decisão pode causar uma inversão de valores.


Em recente incidente [confidencial] de impugnação de árbitro que relatei, inseri a seguinte frase:


“as partes livre e voluntariamente se submetem a um procedimento regrado por normas claras e fixas, que no Regulamento prevê a adoção de critérios próprios [do procedimento arbitral] para identificar eventual dependência e/ou parcialidade. O Comitê, integrado por pares dos demais árbitros [todos integrantes da lista] conhecem profundamente as relações alegadas e exercem a atividade visando a assegurar a lisura e higidez do procedimento arbitral” ... “O árbitro indicado tem o dever de revelar às partes apenas fatos que denotem dúvida justificada relativa à sua imparcialidade e independência, aquelas que este acredite que aos olhos da parte poderiam suscitar relevantes dúvidas. Assim, o primeiro crivo, que seria a especificação de tais fatos pelo coárbitro indicado, completa-se ao aceitar a indicação, pois infere-se que este, a seu ver, não está impedido apesar de existirem situações ou fatos que carecem de explicações. As declarações visam a elucidar tais fatos, restrito àqueles que eventualmente poderiam suscitar dúvidas às partes.”


Completamos expondo ser “necessário reafirmar que, ao contrário da função de juiz, revestida da impessoalidade típica da legitimidade institucional estatal com submissão obrigatória e fundada em lei, a arbitragem tem como característica marcante vinculação e submissão voluntária, de natureza contratual, cuja característica inerente é a ‘confiança’ que deve se originar em alguma relação comumente interpessoal, profissional ou acadêmica. A questão, ao ver deste Comitê, deve cingir-se a equidistância, e não a inexistência de vínculos. A relevância de eventuais relacionamentos é conceito chave.”


Assim, importa pontuar que a revelação pressupõe o ato de desvelar fato ou relação que não seja público. Isto é, que não pode ser conhecido pelas partes por meio de consulta ao currículo do profissional ou demais meios eletrônicos[6]. Ou seja, o dever de revelação do árbitro é mitigado pelo dever de investigação [ou curiosidade] das partes.


Ainda assim, é válido ressaltar que, quando indagado pela parte e restrito àqueles fatos que, ao sentir do árbitro indicado, apesar de públicos ou notórios, possam eventualmente ser considerados mais suspeitos, o que de imediato retiro as relações de cunho de vizinhança ou acadêmico, que englobam atividades minimamente remuneradas [que inclui, mas não se limita, a publicações e participação em aulas, obras e eventos], de modo a melhor garantir a higidez do processo, seria recomendável que o profissional, ainda assim, voluntariasse tal informação às partes com as razões suas do porquê tal fato não comprometeria sua imparcialidade ou independência.


Na busca pelo equilíbrio entre a eficiência e a segurança jurídica, cabe ao árbitro agir com bom senso e tal bom senso da arbitragem deveria ser o critério dos ‘comitês institucionais’ e dos juízos estatais ao julgar impugnações. Infelizmente nem a comunidade arbitral nem o Judiciário conhecem profundamente tal critério. Isso se faz ainda mais presente na medida em que a jurisprudência caminha no sentido de dar maior atenção ao efeito subjetivo que uma violação ao dever de revelação possa causar, fazendo com que os standards de impugnação, substituição e revelação se tornem cada vez mais próximos.


Assim agindo, estaríamos depurando o procedimento arbitral, reparando eventuais falhas que certamente existem e combatendo as atitudes indesejáveis de diversos partícipes do processo arbitral, que durante e após concluída a arbitragem, com táticas de guerrilha, alcançam seus objetivos, quaisquer que sejam esses.


 

[1] Prof. Livre-Docente da PUCSP; Coordenador da Subárea de Direito Econômico Internacional; Coordenador do Núcleo de Arbitragem da Graduação e Extensão da PUCSP. [2] HALPRIN, Peter A. Resisting Guerrilla Tatics in International Arbitration. In: Arbitration: The International Journal of Arbitration, Mediation and Dispute ManagementArbitration: The International Journal of Arbitration, Mediation and Dispute Management, vol. 85, Issue 1, fev/2019, Kluwer. Disponível em: https://kluwerlawonline.com/journalIssue/Arbitration:+The+International+Journal+of+Arbitration,+Mediation+and+Dispute+Management/85.1/19311. [3] José Rogerio Tucci afirma que “A rigor, na maioria dessas situações, a parte que sai derrotada no processo arbitral guarda "no bolso do colete" a alegação (tardia) de suspeição do árbitro, para suscitá-la na ação judicial em que busca a anulação da sentença arbitral. É assim um caso clássico da denominada "nulidade de algibeira"! (TUCCI, José Rogério Cruz e. Impugnação de árbitro e preclusão temporal na jurisprudência, Conjur, 30.04.2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-30/paradoxo-corte-impugnacao-arbitro-preclusao-temporal-jurisprudencia). [4] TJSP, Ap 1056400-47.2019.8.26.0100, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. j. 25.08.2020, rel. Des. Fortes Barbosa, DJ 25.08.2020. [5] Nesse sentido: TJSP, Ap 9124982-89.2007.8.26.0000, 8ª Câmara de Direito Privado. j. 03.08.2011, rel. Des. Luiz Ambra, DJ 16.08.2011. [6] TJSP, Ap 1076161-35.2017.8.26.0000, 31ª Câmara de Direito Privado. j. 08.09.2020, rel. Des. Francisco Casconi, DJ 08.09.2020.

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