Gustavo da Rocha Schmidt [1]
O árbitro, como sabido, não é um prestador de serviços. É, na exata letra do art. 18 da Lei nº 9.307/96, “juiz de fato e direito” da causa. Exerce função jurisdicional, não possuindo relação contratual com os litigantes. A relação do árbitro com as partes, muito diferente disso, é de natureza institucional. Exatamente por isso, nos litígios que tenham a Administração Pública como parte, não há que se falar em licitação para a escolha dos membros do painel arbitral.
Ainda assim, é importante que se fixem parâmetros mínimos, mediante a competente regulamentação, que orientem os agentes públicos na indicação, quando da instauração da arbitragem, tanto do árbitro único, quanto do respectivo coárbitro (em se tratando de tribunal arbitral), até para evitar escolhas imorais ou por mero capricho pessoal. É nessa linha que a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) preceitua, em seu art. 154, que “o processo de escolha dos árbitros” “observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes”.
Isonomia aqui significa que, no procedimento arbitral, deverá ser assegurada às partes igualdade de condições no processo de nomeação dos árbitros, sem qualquer privilégio, para qualquer dos polos processuais. Assim, no caso de árbitro único, a indicação deverá ser feita conjuntamente pelas partes. Se os litigantes não chegarem a um consenso quanto ao árbitro a ser indicado, a nomeação deverá ser feita pela câmara eleita, em se tratando de arbitragem institucional[2], nos termos do respectivo regulamento, ou, em se tratando de arbitragem ad hoc, pelo Judiciário, na forma do art. 7º, § 4º[3], da Lei de Arbitragem. Ao passo que, quando a arbitragem for processada e julgada por um colegiado, caberá a cada uma das partes a indicação de um coárbitro e estes, por sua vez, escolherão o Presidente do Tribunal Arbitral. De mais a mais, conforme orientação fixada no célebre caso Dutco[4], na hipótese de arbitragem multiparte, havendo impasse em qualquer dos polos da relação processual a respeito do árbitro a ser indicado, todos os integrantes do Tribunal Arbitral deverão ser nomeados pela instituição arbitral ou, em caso de arbitragem ad hoc, pelo Judiciário, de modo a se preservar a igualdade no procedimento.
O processo de escolha dos árbitros, ademais, deverá levar em consideração critérios técnicos. Preocupou-se o legislador, neste particular, em assegurar que uma das reconhecidas vantagens na adoção da via arbitral seja respeitada: a especialização dos julgadores. De nada adianta para a Administração Pública fazer uso do juízo arbitral e, no momento de nomear o árbitro para a causa, indicar alguém que nada entende do assunto. Não se pode deixar de considerar, outrossim, que a exigência de rigor técnico na indicação do coárbitro, pelo ente estatal, reduz os riscos de escolhas voltadas ao atendimento de interesses estritamente pessoais e imorais, em desvio de finalidade.
Por fim, é essencial que se estabeleça um procedimento transparente de nomeação dos árbitros, pela Administração Pública, de modo a viabilizar a fiscalização das escolhas feitas. Para tanto, é recomendável a regulamentação do tema pelo Poder Executivo, por decreto ou resolução, que leve em consideração as especificidades administrativas do ente estatal, de modo a definir a autoridade competente para a escolha do coárbitro, a qualificação técnica a ser preenchida, mandatoriamente, por aqueles que sejam indicados pela Fazenda Pública para o exercício da função e o procedimento interno aplicável à indicação.
Cabe perquirir, a esse propósito, se pode o Tribunal de Contas efetuar o controle da escolha dos árbitros feita pelo Poder Público. É certo que a indicação de árbitros, pelo órgão jurídico estatal (ou por quem fizer a indicação pela Administração Pública), não pode ser utilizada para atender a interesses pessoais, inconsistentes com o princípio republicano, devendo dar-se de forma transparente e tendo por parâmetro o conhecimento técnico daquele que for apontado para a função. Isso, por si só, já revela que algum grau de controle há de ser admitido.
Isso não significa, contudo, que possa a corte de contas, em inadmissível interferência no procedimento arbitral, afastar qualquer dos árbitros nomeados, após regularmente instituída a arbitragem, na forma prevista na Lei nº 9.307/96 (art. 19, caput[5]). A relação jurídica havida entre o árbitro e as partes – repita-se - é de natureza institucional (e não, contratual), exercendo o árbitro função jurisdicional. Iniciada a fase arbitral, o árbitro passa a ostentar a qualidade de juiz de fato e de direito da causa, de modo que o seu afastamento só há de ser admitido nas estritas hipóteses da Lei de Arbitragem, por fato superveniente ou não revelado oportunamente, que acarrete o seu impedimento ou suspeição para a causa.
Ficando caracterizado, em um momento posterior, que a indicação foi feita sem considerar o interesse público, mas em desvio de finalidade, para, a título ilustrativo, atender a um correligionário, sem qualquer conhecimento técnico sobre a temática em discussão, caberá a responsabilização da autoridade administrativa no âmbito do Tribunal de Contas, ou mesmo do Ministério Público.
O art. 154 da Lei nº 14.133/2021, na verdade, permite à corte de contas três diferentes linhas de ação. Permite, em primeiro lugar, que fiscalize eventual regulamentação a ser baixada, no âmbito do Poder Executivo, a respeito da nomeação de árbitros, de forma a assegurar que os critérios indicados (isonomia, expertise e transparência) sejam efetivamente respeitados. Permite, também, que proíba, de antemão, a nomeação de determinados “árbitros” pela autoridade responsável, por histórico de corrupção ou por atuarem, com frequência, em causas contra a Fazenda Pública, exemplificativamente. Permite, por fim, que o Tribunal de Contas penalize o agente público que, responsável pela nomeação, ignore deliberadamente os critérios estabelecidos pelo aludido art. 154, por dolo ou erro grosseiro[6].
Seja como for, não pode ter o Tribunal de Contas, em hipótese alguma, qualquer ingerência na nomeação feita pelo particular, por se tratar de indicação da confiança da parte, que encontra restrições, apenas, na Lei de Arbitragem. Neste caso, se o ente estatal discordar da escolha feita pela parte privada, poderá recusar o nome indicado, impugnando-o, na forma prevista na Lei nº 9.307/96 (art. 14[7]), desde que caracterizada alguma das hipóteses de impedimento ou suspeição previstas na legislação processual.
[1] Professor da FGV Direito Rio. Presidente do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA e da Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution – RBADR. Doutorando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Master of Laws pela New York University of Law. Mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio. Advogado. Sócio fundador de Schmidt, Lourenço & Kingston - Advogados Associados. Procurador do Município do Rio de Janeiro. É, ainda, Presidente da Comissão de Arbitragem dos BRICS da OAB Federal. [2] Sobre a distinção entre arbitragem institucional e arbitragem ad hoc, vide: SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Arbitragem institucional ou ad hoc: a melhor opção para a Administração. Consultor Jurídico, 9 de maio de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-09/schmidt-arbitragem-institucional-arbitragem-ad-hoc. Acesso em: 21.09.2021. [3] Art. 7º. (...)§ 4º Se a cláusula compromissória nada dispuser sobre a nomeação de árbitros, caberá ao juiz, ouvidas as partes, estatuir a respeito, podendo nomear árbitro único para a solução do litígio. [4] Corte de Cassação de Paris, Dutco Construction Co. v. Siemens AG-BKMI, 1992. Sobre o tema, confira-se: TUCCI, José Rogério Cruz e. Igualdade é assegurada às partes na composição do painel arbitral. Consultor Jurídico, 5 de agosto de 2014. Disponível em: www.conjur.com.br/2014-ago-05/igualdade-assegurada-partes-composicao-painel-arbitral. Acesso em: 21.09.2021. Veja-se, ainda, na doutrina internacional: BORN, Gary B. International arbitration: law and practice, Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International, 2012. p. 230. [5] Art. 19, caput: Considera-se instituída a arbitragem quando aceita a nomeação pelo árbitro, se for único, ou por todos, se forem vários. [6] É lembrar que, na forma do art. 28 da LINDB, o agente público só “responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. [7] Art. 14. Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil. § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. § 2º O árbitro somente poderá ser recusado por motivo ocorrido após sua nomeação. Poderá, entretanto, ser recusado por motivo anterior à sua nomeação, quando: a) não for nomeado, diretamente, pela parte; ou b) o motivo para a recusa do árbitro for conhecido posteriormente à sua nomeação.
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